Título: Punições inócuas
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 25/01/2005, Editorial, p. A3

E ncarregado de combater a formação de cartéis e de coibir o abuso do poder econômico, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) está vivendo uma profunda crise de autoridade. Enquanto seus conselheiros são cada vez mais rigorosos com as empresas acusadas de violar a legislação antitruste, o órgão não consegue arrecadar as pesadas multas por eles aplicadas. Essa incapacidade de ver suas decisões cumpridas e de punir nos termos da lei desmoraliza o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência, do qual a Secretaria de Direito Econômico (SDE) e a Secretaria Especial de Acompanhamento Econômico (Seae) também fazem parte, e que é fundamental para preservar o livre jogo de mercado entre nós.

Por falta de recursos financeiros e quadros técnicos, o Cade não sabe ao certo quantas multas já deixou de receber desde a edição da Lei 8.884, de 1994. Uma delas envolve uma conhecida construtora de plataformas marítimas para exploração de petróleo, que em junho de 2001 foi condenada a pagar 1% de seu faturamento bruto anual por fraude em licitação pública. Outra envolve uma rede de postos de gasolina que foi flagrada manipulando preços. O caso mais conhecido é o do cartel do aço. Apesar de terem sido condenadas em outubro de 1999 a pagar multas de R$ 22,1 milhões, R$ 16,1 milhões e R$ 13,5 milhões, respectivamente, até hoje a Companhia Siderúrgica Nacional, a Usiminas e a Cosipa, que recorreram à Justiça, não depositaram um único real.

A origem dessa crise de autoridade do Cade está num velho e conhecido problema institucional: o anacronismo de nossa legislação processual. Com sua ultrapassada sistemática de recursos e prazos judiciais, criada em nome da "garantia" do amplo direito de defesa, empresas infratoras e devedoras podem impetrar as mais variadas medidas cautelares nas diferentes instâncias dos tribunais, conseguindo, assim, suspender temporariamente penas e multas aplicadas por órgãos do Executivo em processos administrativos. E como o Superior Tribunal de Justiça e o Supremo Tribunal Federal demoram anos para julgar em caráter definitivo o mérito dos processos, na prática isso compromete a autoridade funcional do poder público e dissemina a crença na impunidade.

Por isso, diante da excessiva facilidade com que se pode recorrer no âmbito do Judiciário contra decisões e procedimentos administrativos do Executivo, essa crise de autoridade não é exclusiva do Cade. Pode ser encontrada em outros setores da máquina governamental. É esse o caso, por exemplo, do Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor (DPDC). Vinculado ao Ministério da Justiça, em 2004 ele autuou nove multinacionais pela prática conhecida como "maquiagem de produtos", ou seja, a redução da quantidade de mercadoria por embalagem sem que os compradores sejam previamente alertados para esse fato.

Uma das empresas autuadas, a Círio, que reduziu de 370 g para 350 g a quantidade de extrato de tomate Peixe nas latas, conseguiu uma decisão judicial cancelando sua inscrição na dívida ativa pedida pelo DPDC à Procuradoria da Fazenda Nacional. Multada por ter diminuído a quantidade de biscoitos por embalagem, a Nestlé distribuiu nota oficial afirmando que iria apelar "dentro do prazo legal" aos tribunais e que "recorrer ao Judiciário é um exercício de direito conferido pela própria Constituição às pessoas físicas e jurídicas cujos direitos sejam lesados ou ameaçados".

De fato, ninguém discute a importância desse direito no regime democrático. O que não se pode aceitar, contudo, é que o "garantismo processual" seja desvirtuado, servindo de mero pretexto para se retirar do Executivo os instrumentos minimamente coercitivos de que necessita para cumprir seu papel de fiscalizador da ordem econômica. É por esse motivo que a crise de autoridade de órgãos como o Cade preocupa, pois entre nós o direito à ampla defesa se baseia em leis processuais ultrapassadas que, ao permitir o excesso de litigação, acabam favorecendo mais os interesses de infratores contumazes do que o próprio interesse público. Por mais paradoxal que pareça, o livre jogo de mercado exige que o Executivo esteja institucionalmente preparado para intervir assegurando a concorrência. Não tem sido esse o caso do Brasil, onde os órgãos encarregados de combater a formação de cartéis não conseguem nem mesmo receber as multas que aplicam.