Título: Lei proíbe carrões do STJ
Autor: Roberto Macedo
Fonte: O Estado de São Paulo, 24/02/2005, Espaço Aberto, p. A2

Volto ao tema da semana passada, a notícia de que o Superior Tribunal de Justiça (STJ) vai gastar R$ 5,42 milhões para renovar os carros de uso dos seus ministros, adquirindo, ao custo unitário de R$ 146,5 mil, 37 autos do modelo Ômega, da General Motors (GM), fabricados na Austrália. O STJ procurou justificar o disparate com o insustentável argumento de que a aquisição pouparia anualmente R$ 367,8 mil em peças de reposição, que seriam gastos se mantida a frota atual nos próximos dois anos, em face desse prazo de garantia oferecido pelo vendedor da nova frota. Já argumentei, sem questionar a necessidade e o tamanho da frota, que economia mesmo seria comprar automóveis nacionais (acrescento: inclusive da própria GM), cujos modelos mais caros têm preço próximo da metade do de um Ômega australiano. Recebi várias mensagens de leitores igualmente indignados com essa mordomia descabida e altamente custosa, custeada pelos brasileiros, que arcam com o peso de uma carga tributária já prejudicial ao País. E que é, ainda, continuamente agravada por despesas públicas, decididas por gente que gasta o dinheiro alheio com uma irresponsabilidade que não praticaria se fosse o próprio, num processo que também aumenta a dívida do governo. Nesse diálogo com leitores soube de legislação que sabiamente restringe a aquisição de carros de luxo pelo governo federal. É a Lei n.º 1.081, de 13/8/50, que no seu artigo 6.º estabelece que "os automóveis destinados ao serviço público federal, observadas as condições estabelecidas nesta Lei, serão dos tipos mais econômicos e não se permitirá a aquisição de carros de luxo, salvo na hipótese dos carros destinados à Presidência e Vice-Presidência da República, Presidência do Senado Federal, Presidência da Câmara da Deputados, Presidência do Supremo Tribunal Federal e Ministro de Estado". No seu artigo 14 ela prevê penalidades para os infratores, nos termos do estatuto que rege os servidores públicos. Essa lei pode ser encontrada no portal do Palácio do Planalto (www.planalto.gov.br), muito utilizado para consultas sobre a legislação brasileira. A lei é antiga e é possível que tenha sido revogada por outra, pois milhares vieram depois. Mas acho pouco provável, pois ela é sábia no seu conteúdo ao disciplinar a aquisição e o uso de um bem público sabidamente propenso a abusos. Por que seria revogada? Ademais, o portal costuma registrar modificações posteriores e não encontrei nenhuma, mas um amigo advogado me advertiu que a fonte não é completa nessa tarefa. Pesquisei também no portal do Senado Federal (www.senado.gov.br), outro muito utilizado para consultas sobre a legislação. Segundo o que lá está sobre essa lei, foi revogado apenas o seu artigo 9.º, que limitava a motoristas profissionais a condução dos veículos oficiais. Assim, a Lei n.º 9.327, de 10/12/96, permitiu que essa condução fosse feita também por outros funcionários, desde que credenciados pela Carteira Nacional de Habilitação. Daqui para a frente, passo o assunto a repórteres, juristas, autoridades e quem mais se interessar por ele, pois só posso clamar pelo seu esclarecimento. Se os demais artigos da lei inicialmente citada, em particular o 6.º, continuam em vigor, estaríamos diante de um fato gravíssimo, com uma das mais altas Cortes de Justiça do País perpetrando uma flagrante ilegalidade. Ademais, conforme a matéria deste jornal que serviu de base ao meu artigo anterior, também os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), e não apenas o seu presidente, são usuários de carros do mesmo modelo. Se for constatado que houve a revogação e a aquisição é permitida, trata-se de outro escândalo. Nesse caso, a lei antiga deveria ser restabelecida, pois a compra fere normas morais, éticas, o bom senso e outros bons costumes que constituem a base de um ordenamento jurídico digno do nome. Aliás, fosse tal embasamento sólido no País, nem precisaríamos de lei para disciplinar o assunto. Como o caso sugere o contrário, se não vale a lei antiga (o que teria de ser demonstrado), que venha uma nova ou mesmo medida provisória antes que a moda continue nos seus efeitos maléficos. Em particular, há agora na presidência da Câmara o deputado Severino Cavalcanti, que absurdamente defende para os deputados federais os mesmos salários dos ministros do STF. Se dominar também o conceito de salários indiretos, pode desejar ainda um carro do mesmo tipo para cada um de seus pares, e teríamos mais 513 a rodar por Brasília. Entretanto, com a lei ou sem ela, confesso meu ceticismo quanto a um desenlace respeitável desse caso, mas ficaria feliz se os fatos mostrassem o contrário. Esse ceticismo é alimentado pela nossa tradição "republicana" de desrespeito ao cidadão e ao bem comum. Outra razão é que anteontem, no Fórum dos Leitores, uma procuradora regional da República, a dra. Ana Lúcia Amaral, também indignada com a compra dos veículos pelo STJ, inicialmente manifestou sua estranheza diante da ponderação de um juiz de Direito (publicada na mesma coluna em 20/2), o dr. Venicio Antonio de Paula Salles, que propôs uma ação do Ministério Público (MP) como solução para o desmando. Em seguida, a procuradora mostrou-se descrente quanto à hipótese de que algum magistrado desse "acolhida a alguma iniciativa do MP argüindo improbidade por parte dos integrantes do STJ, que respondem pela deliberação da compra dos automóveis de luxo". Tudo indica que estamos diante de um caso que mais uma vez demonstra o vazio institucional da ausência de controle externo para um Poder que num caso como esse demonstra total ausência de autocontrole. Roberto Macedo, economista (USP), com doutorado pela Universidade Harvard (EUA), é pesquisador da Fipe-USP e professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie. E-mail: roberto@macedo.com