Título: Creta e um outro tsunami
Autor: J. O. de Meira Penna
Fonte: O Estado de São Paulo, 24/02/2005, Espaço Aberto, p. A2

Desastres naturais nos impressionam por demonstrarem a precariedade da vida humana e a submissão de nosso destino a forças naturais, externas, que não podemos controlar. O recente tsunami no Oceano Índico revelou-se um espetáculo particularmente trágico pela extensão geográfica de seus efeitos e pelo fato de haver vitimado um número considerável de turistas europeus. O número de vítimas provavelmente ultrapassou os 300 mil.

Historicamente, de fato, nunca um desastre de tal magnitude geográfica atingiu, indiscriminadamente, tantas praias e continentes do globo terrestre. Foi, além disso, dos 14 grandes terremotos registrados nos últimos cem anos, o de mais alto índice de magnitude, 9. Em 1976, o de Tangshan, no norte da China, de intensidade 8.2, causou pelo menos 240 mil mortos, porque afetou uma área intensamente povoada. O de Tóquio-Yokohama, em 1923, talvez tenha sido mais catastrófico, em termos numéricos absolutos, porque se converteu num incêndio monumental numa cidade de construções de madeira. Em 1883, o vulcão Krakatoa, entre Java e Sumatra, explodiu, provocando um tsunami de 30 metros de altura que afetou todo o litoral mais baixo das duas ilhas. Seus efeitos foram sentidos até a costa oeste da América do Sul, cobrindo de cinzas o planeta inteiro.

Do ponto de vista histórico, é interessante a erupção do Vesúvio do ano 79 de nossa era, porque envolveu de cinzas Herculano e Pompéia, proporcionando-nos o conhecimento direto dos aspectos práticos e urbanos da vida doméstica dos romanos no apogeu do Império. Catástrofes mais mortíferas são, no entanto, conhecidas, especialmente na China e na Índia. Inundações do Rio Yang-tse e fome que podem carregar milhões de vítimas foram registradas em tempos históricos. Servindo em meu primeiro posto, Calcutá, eu mesmo assisti aos primórdios do flagelo na Província do Bengal, em 1941/42. Cito ainda como exemplo a fome de 1877, que eliminou um terço da população do Ceará. Esse problema da fome, aliás, tem merecido a preocupação de nosso generoso atual presidente da República, de reduzi-la a zero.

Entretanto, estou agora recuando 3.500 anos, a fim de mencionar outro momentoso cataclismo, que teve implicações muito mais graves para o progresso da humanidade. Refiro-me à erupção e explosão do vulcão de Thera, hoje Santorini, a mais meridional das ilhas do Mar Egeu. Foi um evento que destruiu a civilização minoana de Creta e atrasou, por mais de 200 anos, o desabrochar da Grécia clássica. Uma das faces do vulcão sobreviveu e permitiu o retorno posterior da população, que hoje habita o alto do precipício assim formado. Numa obra de propaganda do turismo, A Place do Stay (Penguin, 1999), um conjunto de casas de alto luxo, formando hotel, é oferecido aos que ambicionam o esplendor da vista e não temem o perigo dos constante terremotos, o último em 1956. Thera é igualmente notável por haver, segundo a mitologia, sido o local onde Sísifo, o rei de Corinto que procurou enganar a Morte, foi condenado a passar o resto da existência levando para o alto da montanha de mais de 300 metros de altura uma enorme pedra que, então, rolava até o mar, obrigando o infeliz a repetir a jornada indefinidamente. Camus, o escritor "existencialista" francês, usou o mito, em 1942, como símbolo da existência humana, graças ao qual foi homenageado com o Prêmio Nobel.

O cataclismo ocorrido entre 1500 e 1400 antes de Cristo pode haver sido, de fato, provocado um monstruoso tsunami. Não somente Creta foi afetada, mas todo o litoral do Mar Egeu, Síria e Palestina, assim como o delta do Nilo, não se podendo calcular o que realmente aconteceu. A população de Creta desapareceu ou emigrou. Não é impossível imaginar que a lenda do dilúvio universal tenha sido construída em torno da memória arcaica da tragédia entre os povos da área. A lembrança coletiva da existência de uma cultura anterior na Atlântida, a que o próprio Platão se refere em seus diálogos metafísicos, nasceu presumivelmente desse esquecido fenômeno de generalizada destruição, logo agravado pelas primeiras invasões das tribos dóricas que, eventualmente, dominaram a Grécia clássica. A civilização minoana, com seus contatos com o Egito e a outra velha cultura do Oriente Médio mesopotâmico, sofreu, de qualquer forma, um colapso do qual só emergiria pelo domínio da cultura clássica erguida no Peloponeso e em torno da Península Ática, e das velhas metrópoles no lado turco do Mar Egeu.

Em Cnossos, evidentemente, os restos dos grandes palácios, monumentos e decorações murais da época minoana escaparam da destruição porque suficientemente longe do mar para sofrerem da inundação. Minos, ele próprio, foi responsável por outro conjunto de mitos. O touro era adorado e assim surgiu a lenda do Minotauro, identificado ou a uma dinastia ou a um rei prestigioso que governou a ilha. Um tipo de tourada era praticado, no qual o atleta, homem ou mulher, agarrava o chifre do animal e dava um salto por cima dele, conforme se vê pintado nas paredes que sobreviveram. Outra lenda relativa a Minos é a do Labirinto, do qual conseguiu Teseu, rei de Atenas, escapar graças ao fio que Ariadne lhe proporcionou.

A natureza não perde ocasião de demonstrar seu poder, quiçá para conscientizar-nos de nossa insignificância.