Título: Briga política causou falta de remédio
Autor: Lígia Formenti
Fonte: O Estado de São Paulo, 24/02/2005, Vida &, p. A13

A falta de medicamentos anti-retrovirais no País foi provocada pelo próprio Ministério da Saúde, que atrasou em quase três meses o pedido de compra e liberação de verba necessária para produção dos laboratórios oficiais. O secretário de Ciência e Tecnologia do ministério, Luís Carlos Lima, atribui a demora a uma estratégia criada pelo ministro Humberto Costa para retirar de sua pasta o poder de decisão, materializada numa portaria editada em agosto. "Havia um processo encaminhado. Tudo foi interrompido quando retiraram poderes da minha pasta para concentrar decisões no gabinete, na Secretaria Executiva e na Secretaria de Vigilância em Saúde", acusa. O líder do PP na Câmara, deputado José Janene, afirmou que o risco de desabastecimento foi comunicado ao Palácio do Planalto, em janeiro. "Informamos o governo assim que soubemos do problema pelo secretário Lima", afirmou. O Estado procurou o ministro Humberto Costa, para que ele comentasse as acusações. Sua assessoria informou, às 20h30, que as declarações de Lima estão sendo analisadas e que somente hoje o ministério irá se pronunciar oficialmente.

A nova crise política do Ministério da Saúde tem como pano de fundo o descontentamento de Costa com a indicação de Lima para o cargo, pela cota do Partido Progressista (PP). O secretário se queixa de que sua atuação foi marcada por dificuldades e desmandos, que partiam da própria sala do ministro. "Já encontrei a secretaria com sérios problemas estratégicos e riscos de abastecimento. Demiti Norberto Resh, por incompetência, e ele logo foi nomeado assessor do ministro", diz.

DÍVIDA

A encomenda de medicamentos aos laboratórios oficiais é acertada em outubro, mês em que é liberado um adiantamento de recursos para a compra de matéria-prima. Em 2004, o processo somente foi firmado em 29 de dezembro, conta o presidente da associação dos laboratórios oficiais (Alfob), Carlos Alberto Pereira, que fornece quase 80% dos medicamentos da rede pública. "Enquanto o governo não se resolvia, não podíamos iniciar a produção."

Pereira afirma que só não faltaram remédios para outras áreas porque havia estoque de produtos e matéria-prima. Ele garante que o atraso de fornecedores indianos foi apenas outro complicador. "Se pedidos tivessem sido feitos na época correta, isso não teria ocorrido, mesmo com atraso de fornecedor." Na semana passada, o ministério atribuiu o desabastecimento ao atraso do fornecimento de matéria-prima para o AZT.

SETEMBRO

O ministério sabia, ainda, que a distribuição de medicamentos antiaids operava no limite do desabastecimento desde setembro, quando os primeiros serviços começaram a registrar racionamento. A coordenadora-adjunta do programa de DST/Aids de São Paulo, Maria Clara Gianna, diz que problemas foram registrados com biovir, saquinavir gel e atazanavir. "Estou no programa desde 1988. Nunca vi problemas de desabastecimento como este."

Ela lembra que há meses centros convivem com problemas de falta de preservativos. Neste mês, São Paulo deveria receber 5 milhões de unidades. Chegou somente 1,4 milhão. "Toda hora há uma desculpa: tsunami, problemas de licitação. Mas tudo isso não esconde a grande desorganização no sistema de compra. Não há como trabalhar sem remédios e sem preservativos."

Ex-coordenador do Programa Nacional de DST/Aids, Alexandre Grangeiro diz não se espantar com a crise. "Ela vem sendo desenhada já há alguns meses. O programa vem perdendo poder, quadro de especialistas e não há nenhum sinal de que isso vai mudar."

Grangeiro lembra que, em outros anos, a coordenação do programa acompanhava todas as etapas da negociação de medicamentos. "Era claro que isso ia acontecer. Mas o pior é que estão brincando com vidas. De pacientes e, no caso de camisinha, de pessoas que passam a correr o risco de se infectar."