Título: João Paulo II causa polêmicas em novo livro
Autor: Simone Iwasso
Fonte: O Estado de São Paulo, 24/02/2005, Vida &, p. A16

Nas páginas dedicadas a abordar o que considera "ideologias do mal", no segundo capítulo de seu novo livro Memória e Identidade (editora Objetiva, 192 págs., R$ 29,90), o papa João Paulo II, de 84 anos, provocou polêmica entre comunidades alemãs judias ao classificar como formas semelhantes de extermínio as políticas nazistas e o aborto atualmente permitido por lei em alguns países. A reação crítica ao livro, lançado ontem na Itália e disponível a partir de hoje nas livrarias brasileiras, fez com que o cardeal Joseph Ratzinger, da Congregação para a Doutrina da Fé, desse uma declaração, divulgada pelo Vaticano, dizendo que "a identificação entre holocausto e aborto é alheia ao livro e à idéia do santo padre".

O porta-voz do Vaticano, Joaquín Navarro-Valls, também desmentiu as possíveis comparações entre os dois fatos, dizendo que o papa não deseja comparar os sistemas do mal e sim identificar as raízes do mal moral. Segundo ele, a associação é um equívoco que não tem fundamentos no livro.

No polêmico parágrafo, o papa escreve, após falar do fim do nazismo, que "resta ainda o extermínio legal de seres humanos concebidos e ainda não nascidos; trata-se de mais um caso de extermínio decidido por parlamentos eleitos democraticamente, apelando ao progresso das sociedades e da humanidade inteira".

Foi até agora a maior, mas não a única polêmica causada pelo quinto livro do papa. No capítulo 22, ao tratar da democracia contemporânea, ele relativiza o sistema, afirmando que "a ética social católica apóia, por princípio, a solução democrática (...) Mas longe dela - é bom especificá-lo! - 'canonizar' esse sistema".

Uma afirmação que permite, segundo o professor de teologia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) Fernando Altemeyer, várias interpretações. "Tudo o que o papa escreve no livro acaba sendo polêmico, são posições que se permitem a isso. E acredito que ele mesmo quer provocar essa polêmica. Se ele escreveu, ele quer que os assuntos sejam discutidos. No caso da democracia, ele apenas diz que ela não é um bem maior, imutável, que pode ser aperfeiçoada ou modificada em algum tempo futuro, por exemplo."

Tomando como base as reflexões de Tomás de Aquino, João Paulo II discute os sistemas políticos do século 20, os perigos da liberdade extrema, a definição de valores morais e a diferença entre o bem e o mal - tendo como bem os ensinamentos de Deus presentes na Bíblia e como mal todas as filosofias e costumes que se opõem a isso.

Como exemplo, além do aborto, o pontífice cita as pressões no Parlamento Europeu para que a união homossexual seja reconhecida como forma de família, permitindo até mesmo a adoção de crianças por esses casais. "É lícito e mesmo forçoso perguntar se aqui não está atuando mais uma ideologia do mal", escreve.

No fim do livro, o papa comenta a tentativa de assassinato que sofreu em 1981, insinuando que o criminoso turco não teria agido só e que poderia estar a mando de alguém. A renda obtida com as vendas do livro serão doadas para instituições de caridade, segundo o Vaticano. Ontem, dia do lançamento do livro, o papa fez sua mais longa aparição para os fiéis, por meio de um sistema de vídeo, por causa da chuva e do vento na Praça de São Pedro.

BIOGRAFIA

No Brasil, além do lançamento de Memória e Identidade, será lançado amanhã o livro João Paulo II: uma biografia (editora Record, 784 págs., R$ 69,90), escrita pelo jornalista francês Bernard Lecomte. A obra foi lançada em 2003 na França e recebida como uma das mais completas sobre o papa.