Título: Rebeliões estimuladas
Autor: Carlos Alberto Di Franco
Fonte: O Estado de São Paulo, 28/02/2005, Espaço Aberto, p. A2

Recentes rebeliões promovidas por internos com estímulo de funcionários da Fundação do Bem-Estar do Menor (Febem) de São Paulo demonstram que, independentemente da sabotagem dessa máfia, o governo do Estado de São Paulo não deve recuar no processo de reforma do sistema. Em um mês, o secretário de Justiça e presidente da Febem, Alexandre de Moraes, levou à cadeia monitores acusados de tortura, identificou fraudes nos pedidos de licenças médicas e anunciou que identificaria a "banda podre" existente entre os funcionários da instituição. Com a demissão de centenas de funcionários e a contratação de novos agentes de segurança e educadores sociais, Moraes, de fato, desencadeou um braço-de-ferro com os agentes insatisfeitos com as mudanças. Por isso, novas rebeliões e protestos de funcionários devem continuar nas próximas semanas. Cabe ao governo, independentemente do desgaste político gerado pela crise, perseverar na meta. Até o fim.

A estratégia adotada é correta. Os novos agentes de segurança completaram, no mínimo, o ensino médio e os educadores sociais têm formação universitária. Ademais, não acumulam funções. É absurdo, como lembrou o coordenador estadual do Movimento Nacional de Direitos Humanos, Ariel de Castro Alves, que monitores que haviam maltratado internos escoltassem suas vítimas, que iam denunciar os agressores às autoridades. Agora, a distorção acabou. Daí o "terrorismo" dos funcionários denunciado pelo secretário de Justiça. É importante que os incentivadores das rebeliões saibam que o seu reinado, cruel e criminoso, entrou em agonia.

Segundo o secretário de Justiça, sua função na Febem não se restringe a conduzi-la, mas a mudá-la. O matiz é importante, pois não há como recuperar o modelo da Febem. É preciso, efetivamente, criar um novo sistema, apoiado em unidades menores e com claro foco educativo. Impõe-se, ademais, denunciar a rede de interesses e preconceitos que, há anos, conspira contra o funcionamento da Febem. Basta pensar, caro leitor, na resistência míope de prefeitos do interior que se recusam a receber unidades da Febem em seus municípios. Assim, por óbvio, é impossível descentralizar o atendimento ao menor infrator. Na outra ponta, juízes enviam para a Febem tanto infratores acusados de homicídio como os que roubam uma galinha. Não cogitam, na prática, de decretar penas alternativas. Finalmente, nós, jornalistas e formadores de opinião, costumamos discutir os efeitos da crise, mas, freqüentemente, não aprofundamos nas raízes do crime infanto-juvenil.

O avanço da onda de crimes com freqüente participação de crianças e adolescentes tem, de fato, deixado a população em estado de choque. Um campeonato de crueldade sem precedentes repercute na crônica policial e engorda os números da delinqüência que vai tomando conta das metrópoles brasileiras. O mal existe e, sem dúvida, tem algo de insondável. Mas a perversidade não é fruto do acaso. É o resultado de uma equação complexa, mas precisa. Exclusão social, desemprego, violência transmitida pela mídia, família dilacerada, uso e tráfico de drogas e impunidade compõem, estou certo, o silogismo dessa dramática patologia social.

A fome, simbolicamente escolhida pelo presidente da República como primeira chaga a ser combatida, é uma das raízes da criminalidade. Mas o que o Brasil precisa com urgência é de um Desemprego Zero. Uma juventude sem trabalho, sem esperança e sem futuro é presa fácil do crime organizado. Crianças carentes de comida, saúde e afeto e legiões de jovens lançados no mercado do desemprego são, de fato, a pólvora do barril anti-social. É curto o itinerário que separa o brinquedo do revólver. É ilógico exigir um comportamento civilizado aos órfãos da dignidade humana. O agredido, cedo ou tarde, vira agressor.

A era do entretenimento, escrupulosamente medida pelas oscilações do Ibope, tem na promoção da violência um de seus carros-chefes. A transgressão passou a ser a diversão mais rotineira de todas. A guerra pela conquista do mercado passa por cima de quaisquer balizas éticas. A onipresença de uma televisão pouco responsável e a transformação da internet num descontrolado espaço para a manifestação de atividades criminosas (a pedofilia, o racismo, a prostituição e a oferta de drogas, freqüentemente presentes na clandestinidade de alguns sites, desconhecem fronteiras, ironizam legislações e ameaçam o Estado de Direito democrático) estão na origem de inúmeros comportamentos patológicos.

A desestruturação da família está, também, no cerne do problema. Na falta do ambiente familiar, as crianças crescem sem referenciais éticos. Seu comportamento é, muitas vezes, uma explosiva combinação de revolta e ódio. Como salientou Mark Stein, colaborador da revista britânica The Spectator, "se a crescente falange de adolescentes assassinos deixa algo claro, é o fato de que cada vez mais pais não conhecem os próprios filhos". As análises dos especialistas e as políticas públicas esgrimem inúmeros argumentos politicamente corretos. Fala-se de tudo. Menos da crise da família. Mas o nó está aí. Se não tivermos a coragem de desatá-lo, assistiremos, acovardados e paralisados, a uma espiral de violência e crueldade sem precedentes.

Os bandidos mirins são criminosos perigosos. Freqüentemente, mais violentos que os adultos. Roubam. Estupram. Matam. Precisam ser retirados do convívio social. Mas têm, ao mesmo tempo, direito a um tratamento digno e a um honesto esforço de ressocialização. A recuperação, embora difícil, é possível. Trata-se de um objetivo que deve ser escrupulosamente perseguido pelos governos. Custe o que custar.

Carlos Alberto Di Franco, diretor do Master em Jornalismo, professor de Ética da Comunicação e representante da Faculdade de Comunicação da Universidade de Navarra no Brasil, é diretor da Di Franco - Consultoria em Estratégia de Mídia Ltda. E-mail: difranco@ceu.org.br