Título: Amorim: 'Rodada não vai fracassar'
Autor: Denise Chrispim Marin
Fonte: O Estado de São Paulo, 11/12/2005, Economia & Negócios, p. B13

Objetivo é derrubar os 'últimos resquícios do feudalismo' e terminar com o que 'nem a Revolução Francesa foi capaz de acabar'

Em meio à negociação mais intrincada de sua carreira, o ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, falou com exclusividade ao Estado e deixou claro que a Rodada Doha tem o objetivo de derrubar "os últimos resquícios do feudalismo" e terminar com o que a Revolução Francesa não foi capaz de acabar. Amorim se referia aos subsídios agrícolas da União Européia e aos produtores rurais que os recebem, que classificou como "novas versões dos antigos vassalos". Otimista, o chanceler sentencia: "A Rodada não vai fracassar. Vamos ter de continuar essa luta". Ao embarcar na sexta-feira para Hong Kong, onde se realizará a conferência dos ministros dos 148 países da Organização Mundial do Comércio (OMC), o chanceler levava consigo uma cartilha pragmática e o peso da liderança do G-20, o grupo de economias em desenvolvimento que insiste em abrir mercados agrícolas e acabar com subsídios. "O G-20 está propondo um corte médio das tarifas agrícolas dos países desenvolvidos de 54%. Na área industrial, a proposta do Brasil resulta em corte médio de 50% nas tarifas. Sem algo próximo disso, a Rodada Doha não fecha", afirmou Amorim.

Segundo ele, a proposta européia é inaceitável. "Prevê o falso corte médio de 47,4% nas tarifas agrícolas. Na verdade, o corte é de 38%. Pretende ainda definir como sensíveis 8% dos itens agrícolas. Dos 2.200 itens, apenas 322 sofreriam cortes."

Amorim disse que é possível "avançar pelos flancos" em Hong Kong e concluir o acordo sobre subsídios às exportações agrícolas e um pacote para os países de maior desenvolvimento. Tais iniciativas dariam uma contribuição para o momento em que a Rodada atacar os pontos essenciais e um sinal de que os países estão dispostos a um acordo. "Há uma visão de todo o mundo, inclusive de países europeus, de que a oferta da UE em acesso a mercados é insatisfatória." Mas essas hipóteses não passam de esperanças do experiente negociador, acostumado a alimentar o otimismo.

As apostas de Amorim apontam para um encontro de líderes mundiais, proposta do presidente Luiz Inácio Lula da Silva apresentada ao primeiro-ministro britânico, Tony Blair, e ao presidente dos Estados Unidos, George W. Bush. Seria a alternativa para destravar o jogo negociador, emperrado até mesmo no nível dos ministros do Comércio.

A trava, no caso, é mantida pela União Européia, que insiste em não poder dar mais nenhum passo para melhorar sua proposta de acesso a mercado em agricultura. Sem esse avanço, os Estados Unidos não se moverão para aprofundar sua oferta de redução nos subsídios a seus produtores agropecuários. "Não podemos continuar reféns de um ou dois países da UE nem esperar que os países em desenvolvimento iniciem uma espécie de leilão, fazendo ofertas cada vez melhores para ver se os europeus sorriem."

"A Rodada é tão importante para a economia mundial, a diminuição da pobreza e até para a segurança internacional que os líderes terão de pesar suas decisões", afirma o chanceler. "Estamos vendo os últimos resquícios do feudalismo. A Rodada Doha tem de ajudar a eliminar o que nem a Revolução Francesa foi capaz de acabar."

Na opinião de Amorim, o diretor-geral da OMC, Pascal Lamy, ainda tenta negociar em Hong Kong temas que podem facilitar o entendimento. Porém, não há avanços na questão central, do acesso aos mercados agrícolas. Segundo Amorim, há quase dois anos, todo mundo considera que o tema dos subsídios agrícolas está resolvido. "Mas não está. Só conceitualmente, porque todos aceitam a eliminação. Não há uma data definida, nem o paralelismo (a barganha entre o fim das subvenções européias à exportação e o esquema americano de concessão de créditos aos embarques e de ajuda alimentar) está solucionado. Poderíamos pôr tudo a perder se fecharmos o acordo agrícola e nos esquecermos dos subsídios à exportação."

O chanceler insistiu em Genebra, na reunião de 3 de dezembro, para que esse ponto fosse mais discutido. "Pelo menos, temos até 1º de março para chegar a uma decisão sobre os vários aspectos desse acerto". Segundo ele, poderia ser definida uma data provisória, como 2010, o que sinalizaria a possibilidade de acordo.

Amorim explica que não existe proposta conjunta do G-20 sobre acesso a mercados industriais e sobre serviços. "O principal condicionante da nossa oferta de acesso a mercados industriais é a oferta da UE de acesso a mercados agrícolas. Não é concebível esperar dos países em desenvolvimento um gesto assimetricamente maior em indústria do que os países desenvolvidos farão em agricultura. Não teria cabimento, contrariaria o bom senso, o princípio do tratamento especial e diferenciado e até o objetivo da Rodada de diminuir desequilíbrios entre agricultura e indústria."

Sobre as tentativas da União Européia de dividir o G-20, Amorim afirma que quebrar essa unidade "será uma iniciativa fútil". "A união do G-20 baseia-se em uma aliança estratégica que vai além dos interesses imediatos. Além disso, a reunião ministerial de Cancún provou que não vivemos mais na época em que os EUA e a UE fechavam diretamente os acordos."

Quanto aos países africanos, aos quais a UE concede livre acesso a seu mercado agrícola há 40 anos, Amorim afirma que eliminar subsídios traria muito mais benefício a esses países do que prorrogar as suas preferências. "O comércio alvo das preferências chega a US$ 1 bilhão. Já o total de subsídios dos países ricos é de US$ 300 bilhões ao ano, e os que seriam reduzidos imediatamente não passam de US$ 60 bilhões."

A hipótese de um acordo direto entre a UE e os Estados Unidos, para fechar a Rodada Doha de uma forma menos ambiciosa, não é cogitada por Amorim. "Acho difícil. Hoje, por motivos de política interna e orçamentários, os Estados Unidos têm interesse real de reformar os seus subsídios à agricultura. Na parte de apoio global aos agricultores e regras para subsídios, a proposta deles não atende aos nossos critérios."

Para o chanceler brasileiro, os Estados Unidos são o aliado da hora na briga com os europeus. "Quando eu pergunto aos negociadores americanos se vão melhorar a proposta, eles respondem que precisam de acesso a mercado agrícola. A resposta não é 'eu já fiz o que podia', como diz a UE. Eu tenho de acreditar que eles estão falando de boa-fé."

Amorim não descarta o interesse dos Estados Unidos no acesso a mercados na área industrial e de serviços, mas entende que o vínculo direto é com acesso a mercados em agricultura. "Se o governo dos Estados Unidos vai diminuir o cheque para o agricultor, terá de compensar esse produtor com mais acesso aos mercados. Não pode compensar o produtor de manufaturas."