Título: Brincando com fogo
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Fonte: O Estado de São Paulo, 19/12/2005, Notas e Informações, p. A3

A provado pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado, em caráter terminativo, o projeto do Estatuto da Igualdade Racial, que envolve um conjunto de ações afirmativas nas áreas de saúde, educação, trabalho, mídia e direito à terra e aumenta o rigor das punições para os crimes de racismo, aguarda agora a votação na Câmara. Elaborado pelo Executivo com base num texto apresentado em 1988 pelo então deputado e hoje senador Paulo Paim (PT/RS) e concebido com o objetivo de romper os "grilhões de 500 anos de discriminação" e "quebrar os círculos fechados da elite", o projeto é um exemplo eloqüente do ranço demagógico inerente às teses politicamente corretas. Quase tudo, nele, é muito ruim. No que se refere ao seu principal objetivo, por exemplo, o projeto é redundante, pois repete o que já está previsto na Lei Afonso Arinos, na legislação penal e na Constituição, no capítulo dos Direitos Fundamentais. Além disso, ao adotar "como diretriz político-jurídica" a "reparação", a "compensação" e as "iniciativas reparatórias" para as "vítimas da desigualdade", indiretamente ele culpa as atuais gerações por problemas pelos quais elas não são minimamente responsáveis, uma vez que decorreram da colonização portuguesa e da própria formação do Estado brasileiro.

Na forma, o projeto do Estatuto da Igualdade Racial peca pelo excesso de normas de natureza programática e pela abundância de conceitos excessivamente vagos, cuja interpretação admite qualquer conclusão. "Nas datas comemorativas de caráter cívico, as instituições de ensino procurarão convidar representantes da população afro-brasileira para debater com estudantes suas vivências relativas ao tema em comemoração", diz um artigo. "Os órgãos federais e estaduais de fomento à pesquisa e à pós-graduação criarão linhas de pesquisa e programas de estudo voltados para temas referentes às relações raciais e questões pertinentes à população afro-brasileira", reza outro.

Mas é no extenso rol das "ações afirmativas" que estão os maiores disparates do projeto. Uma delas dá preferência a afro-brasileiros nas contratações do setor público e da iniciativa privada. Outra norma impõe uma cota inicial de 20% para o preenchimento de cargos de confiança da União, a qual será ampliada até que se atinja a correspondência com "a estrutura da distribuição racial nacional". Uma terceira norma exige que o poder público só adquira bens e serviços de empresas nacionais e de organismos internacionais que adotem programas de promoção de igualdade racial. Outra obriga os filmes, a publicidade, as televisões e as salas de cinema "a apresentar imagens de pessoas afro-brasileiras em proporção não inferior a 20% do número total de atores e figurantes".

Além de manter o sistema de cotas no acesso ao ensino superior público, o projeto torna obrigatória a disciplina História Geral da África e do Negro no Brasil para alunos das redes oficial e privada. Permite a mestres de capoeira lecionar nas escolas. Autoriza praticantes de "religiões africanas e afro-indígenas" a se ausentar do trabalho - e a compensar sua falta posteriormente - para "prática de culto", "celebração de festividades" e cumprimento de obrigações litúrgicas. E, numa associação entre raça e saúde que há muito tempo é repudiada pela ciência, incentiva o Executivo a promover pesquisas sobre doenças prevalecentes na população afro-brasileira.

Este é o maior disparate do projeto do Estatuto da Igualdade Racial. A pretexto de promover a igualdade racial, ele parte do reconhecimento de que existem diferenças biológicas entre indivíduos de raças diferentes e enfatiza o tratamento de "doenças de negros", como a anemia falciforme, dedicando a ela vários artigos. Com isso, além de contrariar toda evidência científica, o Estatuto da Igualdade Racial recorre a velhas e desmoralizadas categorias criadas pelas "teorias" racistas do século 19, desprezando assim a triste história de barbárie por elas deixada.

Num país marcado pela miscigenação e não pela segregação, insistir num projeto tão irresponsável como o do Estatuto da Igualdade Racial é brincar com fogo. Ao procurar solucionar um problema que não existe, o risco é o de acabar estimulando o surgimento de ódios e rancores, deflagrando tensões e conflitos que até agora o País não havia vivenciado.