Título: Burocracia pára pesquisa
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Fonte: O Estado de São Paulo, 19/12/2005, Notas e Informações, p. A3

Apesar das promessas feitas à comunidade científica durante a campanha de 2002 pelo então candidato Lula, as pesquisas sobre biodiversidade continuam praticamente paralisadas e as relações entre pesquisadores e autoridades estão estremecidas. Além de até hoje não ter formulado uma política para o setor, o governo do presidente Lula ainda não conseguiu remover as barreiras burocráticas que tornam quase impossível a coleta de material de campo pelos cientistas e a manutenção de coleções biológicas de fauna e flora. O excesso de burocracia na área sempre foi uma das maiores reclamações dos pesquisadores.

A tensão entre os principais centros de estudos em matéria de fauna e flora do País e as autoridades federais, por causa das regras que o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) insiste em impor, retrata bem esse estremecimento. Criticado pela rigidez da legislação vigente e pela inépcia com que a aplica, o governo decidiu informatizar o processo de licenciamento das pesquisas, para reduzir o tempo gasto por zoólogos e botânicos com o preenchimento de formulários e diminuir o prazo para a liberação das concessões.

No entanto, os dois projetos de instrução normativa por ele anunciados no começo do ano, em vez de simplificar os procedimentos, complicou-os ainda mais. Na ocasião, zoólogos e botânicos acusaram o governo de substituir a burocracia convencional pela burocracia eletrônica. Com isso, o que no início parecia ser uma trégua entre as autoridades federais e a comunidade científica, com o tempo virou um embate aberto. "As normas em discussão multiplicarão exponencialmente o volume de trabalho", disse, na época, a diretoria do Museu Nacional. "Estão tentando colocar uma camisa-de-força e normatizar coisas que a gente sempre fez", acrescentou a diretoria do Museu de Zoologia da USP. "O Brasil precisa preservar sua biodiversidade, mas isso não significa cercear o direito do zoólogo de pesquisar", afirmaram os dirigentes da Sociedade Brasileira de Zoologia.

Diante do impasse, no final de maio o Ibama recuou e se comprometeu a ouvir as sugestões dos pesquisadores. Contudo, o governo não tomou nenhuma providência nesse sentido e agora, sete meses depois, a comunidade científica está sendo surpreendida com um convite para avaliar as novas versões dos dois projetos de instrução normativa. Como era de se esperar, as novas regras não agradaram. "Houve melhorias, mas ainda estão longe de atender às nossas expectativas", afirmou Leandro Valle, presidente da Associação Memória Naturalis, que congrega os principais museus de história natural do País. Para restabelecer o diálogo e abrir caminho para uma negociação, o Ibama se comprometeu a revisar esses projetos até 15 de janeiro.

Segundo as autoridades federais, os problemas decorrem da Medida Provisória 2.186, que foi editada em 2001 para regulamentar o acesso ao patrimônio genético da biodiversidade brasileira, na qual os projetos de instrução normativa são baseados. Como um de seus objetivos era coibir a biopirataria, a MP acabou burocratizando todo o processo de licenciamento para pesquisas. "A lei foi concebida com a idéia de que todo pesquisador é um biopirata em potencial, que precisa ser controlado. Isso só dá para mudar com uma nova lei", afirma o secretário de Biodiversidade e Florestas do Ministério do Meio Ambiente, João Paulo Capobianco.

O problema é que, dentro do governo, ninguém se entende com relação ao teor dessa nova lei. A exemplo do que ocorreu com a Lei de Biossegurança, projetos concebidos pelo Ministério do Meio Ambiente são vetados pelos Ministérios da Ciência e Tecnologia, da Agricultura e do Desenvolvimento. O principal ponto de discórdia gira em torno da repartição dos lucros provenientes de um eventual produto desenvolvido a partir de pesquisas com fauna e flora - um processo que envolve comunidades tradicionais, cientistas, empresas, etc.

Como o presidente da República não quer ou não sabe arbitrar essas divergências, elas paralisaram uma área estratégica para o desenvolvimento do País, o que explica a revolta da comunidade científica. Essa é mais uma amostra do padrão de competência administrativa do governo Lula, em cujo âmbito ninguém sabe ao certo o que fazer e ninguém sabe ao certo quem manda.