Título: Água fria 'mui' amiga
Autor: Dora Kramer
Fonte: O Estado de São Paulo, 14/12/2005, Nacional, p. A6

Sob o fogo inimigo dos aliados, Lula não demora será sustentado pela oposição

No ritmo em que anda a carruagem, não demora sobrará ao presidente Luiz Inácio da Silva o apoio da oposição. Não para se reeleger, bem entendido, mas para governar. Se de fato for candidato em 2006, e estiver em condições competitivas, Lula não terá problemas em reunir em torno de si interessados em pegar uma carona em seu capital eleitoral. Da mesma forma como os queixosos de hoje calaram-se quando lhes interessou subir ao pódio do Planalto junto com ele, mesmo ao custo da negação aos princípios, se o presidente der a volta por cima, as mangas que agora se põem de fora se recolherão sem cerimônia ao obsequioso e reverente silêncio ante a expectativa de mais quatro anos de poder.

O problema de Lula no presente momento não é como ganhar a eleição, mas como levar a termo seu atual mandato. E, nisso, tem sofrido golpes. Não da oposição, cuja obsessão - senão unânime, pelo menos majoritária - tem sido posar de "responsável" e cuidar para que a casa não caia, a fim de não estragar seus planos de voltar o quanto antes ao governo federal.

As contusões presidenciais são produto, primeiro, dos atos e palavras do personagem principal, "difícil", como aponta José Dirceu; ao segundo escalão da tropa de golpeadores - para não dizer golpistas - até então integrada por petistas e companhia, junta-se o ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio, Luiz Fernando Furlan.

Ganha destaque no grupo não pelas críticas que fez à taxa de juros e ao porcentual do superávit primário; nestas, de tão corriqueiras, ninguém presta mais atenção. Furlan ganhou patente de oficial na tropa pelo diagnóstico que fez na reunião da Organização Mundial do Comércio: "O governo não faz sinalizações, não traça cenários, não tem objetivos nem estabelece meios para atingi-los."

Ou seja, não governa.

Até então, Furlan havia sido um crítico pontual como tantos outros. Mas agora formulou um conceito que define o governo como um todo, fez uma avaliação avassaladora e não deixou margem para recuos.

Tudo bem que a oposição diga isso todos os dias. Tudo bem que seja verdade, mas quando quem emite essa opinião é um ministro de uma das áreas mais bem-sucedidas do governo, o setor de exportações, trata-se da chancela oficial à constatação de que a crise não é só política.

É, sobretudo, uma crise de gestão das políticas governamentais e é também uma crise de autoridade. E, no caso de Furlan, poder-se-ia também falar em crise de identidade, pois sendo o governo a nau sem rumo que aponta, ele se inclui como um dos navegantes à deriva e não sente desconforto com a situação.

Ao silenciar a respeito, o presidente da República torna verdadeira uma de duas hipóteses: ou concorda, ou não está na posse plena de suas faculdades governamentais para reagir.

O ministro tem todo o direito, senão o dever, de dizer o que pensa. Mas, seria de se esperar que seu chefe o contraditasse no sentido de fazer ver à Nação que há comando.

Lula tem facilidade para construir uma realidade paralela quando o assunto são as denúncias de corrupção. Diz, convicto, que nada houve, não cooptou parlamentares sob o compromisso de lhes financiar as campanhas, seus auxiliares não têm culpa no cartório, ninguém pecou, ninguém prevaricou, no máximo foi a oposição quem conspirou.

Seria de esperar que o presidente exibisse a mesma habilidade para desmontar o retrato de sua administração exibido em Hong Kong pelo ministro Luiz Fernando Furlan. Se não o faz é porque não quer, não pode ou não sabe que argumentos usar para desmentir o ministro.

Casa de ferreiro

Adeptos da tese de que "vontade política" resolve qualquer coisa, os políticos não aplicam a lição em casa. Não conseguem decidir se deve haver convocação extraordinária do Congresso no recesso. Alguns temem o esfriamento da crise, outros sua manutenção em fogo quente, a maioria anseia pelos R$ 25 mil (no mínimo) extras per capita e todos têm pânico da repercussão negativa.

O dado mais importante - se a convocação é real e objetivamente necessária - não entra no balanço do custo-benefício. Se entrasse, bastava decidir por aí, sem embromação.

Planilha

O pessoal dos números realmente não acerta uma quando o assunto é política. Sua reverendíssima, o Mercado, no início da crise tirava por menos seus efeitos, chegando a desconsiderar as denúncias de Roberto Jefferson porque o então deputado não exibia "provas".

Agora, chega a ser constrangedor ver na televisão os meninos das finanças dissertarem a respeito do "risco eleitoral" em suas análises sobre os "perigos" à economia inerentes à realização de eleições no próximo ano.

De fato, o embate político confunde. Sem eleição nem o exercício do contraditório fica mais fácil enxergar o cenário a uma distância superior a um palmo adiante do nariz. Principalmente para quem só leva em conta as contas.