Título: Rodada volta aos trilhos no final
Autor: Rolf Kuntz
Fonte: O Estado de São Paulo, 19/12/2005, Economia & Negócios, p. B5

Os principais negociadores da Rodada Doha, lançada há quatro anos para ser a Rodada do Desenvolvimento, poderão voltar para casa sem levar na bagagem o fracasso da 6ª Conferência Ministerial da Organização Mundial do Comércio (OMC). Na arrancada final, ministros de cerca de 30 países trabalharam, discutiram e trocaram desaforos por cerca de 20 horas, até as 9h30 de ontem, foram descansar e no meio da tarde retomaram as consultas. ¿A rodada chegou a 60% do caminho e ganhou 5% nesta semana¿, disse, depois de encerrada a conferência, o diretor-geral da OMC, Pascal Lamy. Os negociadores, acrescentou, mostraram energia política necessária para concluir o trabalho até o fim de 2006. ¿Agora eu acho isso possível. Não achava há um mês¿, confessou Lamy.

A possibilidade de um entendimento começou a ficar muito clara quando a delegação americana distribuiu, à tarde, a transcrição de uma rápida entrevista dada por seu chefe. Robert Portman, ao sair do centro de convenções. ¿Se 2013 é o melhor que podemos obter, penso que deveríamos olhar muito, muito cuidadosamente para isso¿, acrescentou, referindo-se a uma negociação muito difícil.

No começo da noite, os negociadores haviam sacramentado o compromisso de extinção, até o fim de 2013, de todas as formas de subsídio à exportação agrícola. Esse foi o compromisso mais trabalhoso e poderá simbolizar uma conferência de resultados paradoxais. Nesse tópico, todos podem clamar vitória, a começar pelos europeus. O prazo para o fim dos subsídios do agronegócio é o mesmo da reforma da Política Agrícola Comum (PAC).

Além disso, o texto menciona também as subvenções embutidas no crédito, na ajuda alimentar e no comércio de empresas estatais e monopolistas. O enquadramento vale para Estados Unidos, Canadá, Austrália e Nova Zelândia.

Brasil, EUA e outros exportadores ganham de duas formas: 1) na fixação de uma data, fator de credibilidade do compromisso, segundo o chanceler Celso Amorim; 2) no requisito de extinção de ¿parte substancial¿ dos subsídios à exportação na primeira metade do período de implementação. Isso corresponde a 2010, prazo defendido até a manhã de ontem por brasileiros e americanos e rejeitado pelo comissário de Comércio da UE, Peter Mandelson.

Amorim aponta como bom resultado, também, o compromisso de cortes ¿efetivos¿ no apoio interno causador de distorções no mercado. O truque está na palavra ¿efetivos¿, segundo os diplomatas. Críticos têm opinião diferente. Segundo a ONG Actionaid, a reforma européia levaria os subsídios à exportação de 3 bilhões em 2004 para 1 bilhão em 2013, com ou sem acordo na Rodada Doha. O apoio interno europeu diminuirá muito menos: de 58 bilhões para 55 bilhões no mesmo período.

¿Estão discutindo a cor da maquiagem do fracasso¿, havia dito no começo da tarde o diretor da Actionaid para as Américas, Adriano Campolina. O argumento vale para o caso das subvenções européias à exportação, mas o documento menciona também ¿cortes efetivos¿ nos gastos de apoio interno, elevados tanto na Europa quanto nos EUA. Falta converter ¿efetivos¿ numa porcentagem. Segundo Campolina e Marcos Jank, professor da USP e estudioso de negociações comerciais, não houve avanço nas negociações de acesso a mercados e também isso mostra a pobreza de resultados. Acesso a mercados é o objetivo central da rodada, tem dito Amorim.

O chanceler brasileiro reconhece a modéstia dos acordos até aqui. Mas o resultado não é insignificante, disse o ministro, chamando a atenção para o requisito de cortes dos subsídios internos. Amorim valorizou uma novidade política: pela primeira vez todos os grupos de economias emergentes, pobres e em desenvolvimento agiram de forma coordenada e sem ruptura. O principal negociador da UE, Peter Mandelson, tentou neutralizar as pressões daqueles grupos chamando a atenção para as diferenças de muitos de seus interesses.

O Brasil facilitou a unidade ao encampar demandas de outros países, como a criação de salvaguardas para produtos considerados importantes para a renda, a segurança alimentar e o desenvolvimento rural. Atendeu, assim, pretensão da Índia e de países africanos. A adoção de uma lista desse tipo é defendida também no Brasil pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário. Técnicos do Ministério da Agricultura consideram um despropósito, até porque o Brasil é um eficiente exportador de vários dos produtos propostos para a lista. Mas o Itamaraty acabou admitindo a proposta e assim apoiou as pretensões de países muito menos competitivos na agricultura e muito mais defensivos na estratégia agrícola.

Podem ter sido feitas apostas erradas, mas a atuação do G-20, junto com a de outros grupos de países em desenvolvimento, contribuiu para revigorar as negociações. Apesar do ceticismo e da baixa expectativa, a conferência de Hong Kong repôs a rodada nos trilhos, disse Lamy.