Título: Maria, a que passou o Natal presa
Autor: Marcelo Godoy
Fonte: O Estado de São Paulo, 26/12/2005, Metrópole, p. C1

Maria passou o Natal atrás das grades. Pela segunda vez. A Justiça considera que essa baiana de 47 anos é uma pessoa que deve ser retirada do convívio social, pois se trata de criminosa contumaz. O que Maria Ednalva de Oliveira fez para ficar na cadeia? Primeiro, foi presa por furtar um tender bolinha e uma lata de leite de um supermercado. Era 20 de dezembro de 2004. A carne seria o prato principal da ceia de Natal de sua neta e de outras crianças que viviam na pensão da Barra Funda onde Maria alugava um quarto. Isso lhe valeu pena de 9 meses de prisão. Mas não é só. Sua contumácia fez com que pegasse 5 cremes para o corpo numa loja do centro. Apanhou dos seguranças e voltou para a cadeia. Desde 1981, Maria entra e sai da prisão ¿ quase sempre por bagatelas. Há duas semanas, seu caso chegou à advogada Sonia Regina Arrojo e Drigo, que faz trabalho voluntário para a Pastoral Carcerária. Sonia logo se lembrou de uma história semelhante: a de Rosana, que ficou presa por quatro meses no começo do ano, acusada de furtar dois pacotes de fraldas de R$ 13,80. ¿Primeiro, Maria não cometeu os crimes, pois estava sendo vigiada pelos seguranças das lojas que a esperaram passar pelo caixa para apanhar a mercadoria. Era, portanto, um crime impossível. Depois, existe o princípio da insignificância, reconhecido pelo Supremo, pois um tender bolinha não pode manter alguém nove meses na cadeia¿, diz a advogada, para quem o comportamento repetitivo de Maria é um ¿problema social e não criminal¿.

No ano passado, após ser presa, Maria ficou na cadeia até o fim de fevereiro. Mas 16 dias depois, em 15 de março, foi pega com os cremes. Tinha voltado a usar drogas e estava bêbada. Foi ficando na prisão pelo furto dos cremes. Em 22 de novembro, a 14ª Vara Criminal condenou-a a 9 meses pelo furto do tender. No processo, a ficha criminal mostra que Maria já foi presa 17 vezes, por furto, posse de drogas e até tráfico de drogas. Em algumas vezes, foi inocentada. ¿São processos dos anos 80 e 90 e não sabemos se ali também um fato insignificante fez com que ela, que era consumidora, fosse jogada na cadeia como traficante. O que é insignificante será sempre insignificante e não pode ser usado para formar antecedentes criminais de alguém¿, diz a advogada.

Além disso, diz, as ações de Maria não causaram prejuízo aos donos: tudo foi recuperado pelos seguranças. A perícia judicial constatou que o tender e a lata de leite custavam R$ 55,00. Já os cremes, R$ 167,00.

Conta José Nildo Montenegro, o segurança do supermercado, que Maria era uma velha conhecida. Era a terceira vez que tentava levar comida. Na primeira, os clientes avisaram os vigias. Quando foi pega às vésperas do Natal de 2004, Maria não quis devolver o tender. Aí, chamaram a polícia. Para Maria, ¿todas as crianças são iguais¿, daí o seu ¿direito¿ de pegar comida para a ceia.

A promotora Cristina Helena Figueiredo pediu à 14ª Vara Criminal a condenação de Maria pelo caso do tender com base nos argumentos: ela tem péssimos antecedentes, é reincidente, foi presa em flagrante, única circunstância que impediu a consumação do crime, não quis abrir a bolsa e atirou-a contra os seguranças.

¿A prova produzida ratifica as imputações constantes da denúncia¿, afirmou o juiz Rodolfo Pellizari na sentença. Para ele, ¿não há que se falar em princípio da insignificância¿, pois o valor dos produtos ¿não é insignificante¿. E o crime não era impossível de ter ocorrido, pois se a ação de Maria era ineficaz, ela não era ¿absolutamente ineficaz como exige a lei¿. Quando o crime é impossível de ser cometido a pessoa não pode ser processada.

Depois de analisar essas questões, o juiz condenou Maria a 9 meses e 10 dias em regime semi-aberto. Ou seja, deu-lhe a possibilidade de sair da cadeia para trabalhar e de fazer cinco visitas por ano à família. Na verdade, ela só não foi condenada ao regime aberto ¿ apenas dormir na cadeia ¿ ¿por ser reincidente¿, o que ¿veda a concessão de qualquer benefício à ré¿. Agora, Maria espera outra sentença. Desta vez, será pelo furto dos cremes, cujo processo está na 19ª Vara Criminal ¿ o promotor Pedro Augusto de Castro Andrade e Souza pediu a condenação. Para ele, a manutenção de Maria na cadeia é ¿indispensável¿, pois ela ¿ostenta maus antecedentes¿.

¿Pois é. Para a Justiça, o que ela faz é significante e justifica a sua manutenção na prisão. Mas quem mata pai e mãe ou rouba milhões recebe o direito de responder ao processo em liberdade¿, diz a advogada Sonia.