Título: O Grande Irmão americano
Autor: Eric Lichtblau
Fonte: O Estado de São Paulo, 26/12/2005, Internacional, p. A8

Encravada num vale remoto perto de Sugar Grove, na Virgínia Ocidental, e protegida por uma fortaleza natural de montanhas, encontra-se a maior estações de escuta clandestina do país. Localizadas numa zona protegida de transmissões de rádio, as grandes antenas parabólicas da estação detectam secreta e silenciosamente milhões de telefonemas e e-mails privados por hora. Dirigido pela ultra-secreta Agência de Segurança Nacional (NSA, pelas iniciais em inglês), o posto de escuta intercepta todas as comunicações internacionais que entram no leste dos EUA. Outro posto de escuta da NSA em Yakima, no Estado de Washington, se ocupa da metade ocidental do país. Na capital americana, a NSA se viu subitamente no centro de uma tempestade política. A controvérsia sobre se o governo de George W. Bush violou a lei ao ordenar secretamente que a agência ignorasse um tribunal especial e realizasse escutas clandestinas de cidadãos americanos levou alguns democratas a pedir até o impeachment do presidente. John E. Maclauglin ¿ que, como vice-diretor da CIA em 2001, esteve entre os primeiros a dar explicações sobre o programa ¿ considera essa escuta clandestina a operação mais secreta de toda a rede de inteligência.

A NSA foi criada em segredo absoluto em 1952 pelo presidente Harry Truman. Atualmente ela é a maior e mais importante agência americana de inteligência, fornecendo muito mais informações secretas sobre outros países do que a CIA e demais organizações de espionagem.

Mas a agência ainda vem encontrando dificuldades para se adaptar à guerra contra o terror, na qual seu trabalho não é monitorar Estados, mas indivíduos e pequenas células escondidas por todo o mundo. Para este fim, a NSA desenvolveu tecnologias ainda mais sofisticadas que prospectam vastas quantidades de dados. Essas tecnologias, porém, podem ter um uso limitado no exterior ¿ e, no país, aumentam a pressão para a agência ignorar liberdades civis e contornar canais jurídicos formais sobre investigações criminais.

Originalmente criada para espionar adversários externos, a NSA jamais deveria se voltar para o interior do país. Há 30 anos, o senador democrata Frank Church, então presidente da Comissão Seleta de Inteligência do Senado, investigou a agência e ficou estarrecido. ¿Esta capacidade em qualquer momento poderá ser voltada contra o povo americano¿, disse ele em 1975, ¿e nenhum americano jamais teria qualquer privacidade, tamanha é a capacidade de monitorar tudo: conversas telefônicas, telegramas, qualquer coisa. Não haveria onde se esconder.¿ Ele acrescentou que, se algum dia um ditador assumisse o poder, a NSA ¿poderia capacitá-lo a impor uma tirania absoluta e não haveria meio de combatê-la.¿

Na época, a capacidade da agência se restringia a escutar o que as pessoas diziam em telefones ou escreviam em telegramas ocasionais. Ela não tinha acesso às correspondências privadas. Mas hoje, com as pessoas expressando seus pensamentos mais íntimos em e-mails, expondo seus registros médicos e financeiros na internet e conversando incessantemente em celulares, a agência é virtualmente capaz de entrar na mente de uma pessoa.

O alvo original era o bloco comunista, mas hoje a NSA tenta localizar pequenos grupos de indivíduos que operam em células fechadas, raramente se comunicam por meios eletrônicos (e quando o fazem, usam telefones pré-pagos não rastreáveis ou celulares descartáveis), e estão constantemente se deslocando de um país a outro.

Para tentar rastrear terroristas no exterior, a agência não precisa recorrer a tribunais domésticos, mas no caso de cidadãos americanos suspeitos, sim. Ela precisa recorrer inicialmente ao tribunal conhecido como Fisa (iniciais em inglês da lei que o criou em 1978, Foreign Intelligence Surveillance Act, ou Ato de Vigilância de Inteligência Estrangeira), fazendo uma exposição do motivo pelo qual vincula o suspeito a um grupo terrorista, e obter uma autorização para o rastreamento.

O tribunal raramente contraria o governo. Desde que foi criado, em 1978, ele concedeu 19 mil autorizações e rejeitou apenas cinco. E mesmo nestes casos de rejeição, o governo pode apelar para um Tribunal de Revisão, que em 27 anos ouviu só um caso. Se este também rejeitar a solicitação, o governo pode apelar imediatamente a uma sessão fechada da Suprema Corte. Antes dos ataques de 11 de setembro de 2001, a NSA normalmente fazia a escuta clandestina de um pequeno número de cidadãos e estrangeiros residentes nos EUA, enquanto o FBI, que emprega uma tecnologia bem menos avançada, pedia a maior parte das autorizações do Fisa. Apesar da pouca chance de ter um pedido rejeitado, Bush estabeleceu um programa secreto pelo qual a NSA ignoraria o Fisa e começaria a fazer a escuta clandestina de americanos sem autorização. Essa decisão parece ter se baseado em um novo conceito de monitoramento da agência, uma forma, segundo a administração, de efetivamente manejar todos os dados e novas informações.

Na época, as conversas nos círculos de segurança nacional giravam em torno da prospecção de dados: cavar fundo em pilhas de informação para extrair algum padrão ou pista do que poderia acontecer no futuro próximo. Em vez de monitorar uma dezena ou mais pessoas por alguns meses de cada vez, como se fazia, tomou-se a decisão de iniciar a escuta clandestina de centenas, talvez milhares de pessoas por alguns dias ou semanas de cada vez, para determinar quais representavam ameaças em potencial.

As consideradas inocentes seriam rapidamente eliminadas a lista de observação, enquanto as suspeitas seriam objeto de um pedido de autorização de espionagem ao Fisa.

Esse tipo de escuta clandestina ilegal não é a única tentativa do governo Bush de expandir os limites do que é legalmente permissível. Em 2002, revelou-se que o Pentágono havia lançado o Total Information Awareness (TIA), um programa de prospecção de dados dirigido por John Poindexter, um contra-almirante na reserva que serviu como consultor de segurança nacional do presidente Ronald Reagan e ajudou a idealizar o plano de vender armas para o Irã e desviar ilegalmente os recursos para rebeldes na Nicarágua.

Depois de reportagens na imprensa expondo o caráter intrusivo das ações da TIA, esta foi fechada pelo Pentágono e Poindexter acabou saindo do governo. Mas, segundo um relatório de 2004 do Departamento de Contabilidade Geral, a administração Bush e o Pentágono continuam se apoiando pesadamente em técnicas de prospecção de dados. ¿Nosso levantamento de 128 departamentos e agências federais sobre o uso de prospecção de dados revela que 52 agências estão usando ou planejando usar esse método¿, diz o relatório. ¿Esses departamentos e agências relataram 199 esforços de prospecção de dados, 69 dos quais estão planejados e 131 em operação.¿

O governo diz que precisa dessa tecnologia para combater eficientemente o terrorismo. Mas seu efeito sobre a perda de privacidade dos cidadãos tem preocupado muitos políticos, como o senador democrata Jay Rockefeller , vice-presidente da Comissão Seleta de Inteligência do Senado ¿ que, em carta ao vice-presidente Dick Cheney, expressou grave preocupação com os rumos da política do governo Bush nessa área.