Título: América Latina: dias piores virão
Autor: Ivan Carvalho Finotti
Fonte: O Estado de São Paulo, 25/12/2005, Aliás, p. J3

É fácil reconhecer um Marcos Aguinis no meio da multidão. Num continente tomado cada vez mais pelo populismo esquerdista, ele é francamente de direita. Enquanto o povo vota em candidatos que atacam os Estados Unidos, lá está ele defendendo o país de George Bush. Se os jornais atacam cada vez mais a política neoliberal dos governantes latino-americanos, Aguinis afirma que nem neoliberal essa política é. ¿O neoliberalismo existe onde há uma firme democracia, estado de direito, transparência e Justiça independente.¿ Ou seja, aqui é que não. Ex-neurocirurgião e ex-psiquiatra, Aguinis já fez parte da Secretaria de Cultura argentina e é um dos escritores mais prolíficos do país, com 28 obras lançadas. Freqüentador assíduo da lista argentina de best-sellers, escreve com desenvoltura tanto romances como ensaios, além de biografias e livros de contos. Relativamente desconhecido no Brasil, Aguinis tem apenas três títulos lançados por aqui: os romances Assalto ao Paraíso e A Saga do Marrano, da Palíndromo, e o ensaio O Atroz Encanto de Ser Argentino, da Bei Editora. Seu mais recente ensaio, ¿Qué hacer?, sugere propostas para recolocar a Argentina no glorioso caminho do crescimento econômico.

Em entrevista ao Aliás, Marcos Aguinis trouxe à sua linha de fogo o que considera a retomada populista da América Latina. Não poupou críticas aos presidentes da Argentina, da Venezuela, do Uruguai e, principalmente, da Bolívia. ¿Os salvadores devem demonstrar rapidamente seu poder mágico. Do contrário, é muito forte a desilusão¿, disse, referindo-se ao recém-eleito Evo Morales. Quanto a Lula, Aguinis preferiu não opinar. ¿Não me considero suficientemente informado. Não seria sério.¿ Bom para o brasileiro. A seguir, a entrevista.

A VOLTA DO POPULISMO

Será que a eleição de Evo Morales em primeiro turno na Bolívia é uma demonstração de como a América Latina se inclina para o populismo? Sim, é uma volta ao populismo, um retrocesso. Devemos ficar tristes, pois os países que verdadeiramente diminuem a pobreza e a exclusão já se livraram das fórmulas populistas, que sempre terminam em fracasso. Na América Latina, o único país que progride seriamente é o Chile. Sua fórmula é simples: estabilidade institucional, respeito à propriedade privada, previsibilidade, seriedade administrativa. E evitar a demagogia, as promessas falsas e as ilusões redentoras, que são os principais ingredientes do populismo.

CORRUPÇÃO INERENTE

A receita esquerdismo mais populismo é vitoriosa nas urnas, mas não a considero vitoriosa também na administração dos países latino-americanos. As receitas populistas sempre terminaram mal. Não conseguem evitar a corrupção, o autoritarismo, a cultura da esmola. São partes essenciais de seu espírito. As administrações populistas são caprichosas, não pensam a longo prazo, pois buscam êxitos imediatos. Por isso, não estimulam os investimentos produtivos nem asseguram um crescimento sustentável. Limitam-se a oferecer benefícios à classe governante, em prejuízo do resto da nação.

Apesar de bradarem que se importam com as necessidades populares, todos os governos populistas terminam aumentando a pobreza e gerando a decadência. Não há exemplos de governos populistas que tenham melhorado a longo prazo a situação geral de uma nação. Com o tempo, essas nações declinam, como aconteceu com a Argentina, que tem uma larga e penosa história populista. Os líderes populistas querem que haja pobres para que possam suborná-los com suas regalias.

OS RISCOS

Os riscos estão no fato de que os governos populistas acabam tomando medidas heróicas para mascarar seu fracasso. É possível que a Bolívia se lance numa aventura belicosa reclamando seu direito de ter saída para o mar para, desse modo, exacerbar seu nacionalismo e criar uma grande cortina de fumaça. Já há muito tempo se sabe que os maus governantes recorrem a inimigos externos para suprimir os conflitos do interior de seu país.

PRESIDENTES DO POVO

Presidentes com ¿cara de pobre¿ ou ¿cara de índio¿ não são nenhuma garantia. O presidente do Peru, Alejandro Toledo, é de origem indígena e sua etnia não o converteu em um funcionário melhor, nem mais querido, nem mais respeitado. As ¿caras¿ duram pouco se não vão acompanhadas de uma boa gestão. Agora, é verdade que em grande parte foi a Bolívia indígena que levou Evo Morales ao poder. Mas ele também teve o apoio de setores médios e pobres, que o vêem como um salvador. É um dado perigoso, porque os salvadores devem demonstrar rapidamente seu poder mágico. Do contrário, é muito forte a desilusão.

MOVIMENTOS INDÍGENAS

O movimento indígena andino é uma força importante. Poderia dar uma enorme contribuição. Mas está sendo manipulado por idéias arcaicas. Foi inculcado no movimento indígena o mito de que nos tempos pré-colombianos havia um verdadeiro paraíso terreno. De que devem regressar aos sistemas dessa época pré-histórica. É um grave absurdo porque milhões crêem nisso, e não apenas indígenas. O movimento indígena deveria apostar no progresso de sua gente, em ter investimentos, incorporar tecnologias, ser parte do mundo moderno. Não em voltar ao passado. Isso é o que considero trágico para os índios e para o resto da sociedade. Por outro lado, o neozapatismo, outro movimento indígena articulado politicamente, já revelou sua impotência e falta de idéias para conduzir o país. A prova é a peregrinação do subcomandante Marcos para a Cidade do México. Ele nem sequer se atreveu a tirar a máscara e debater em fóruns abertos. Muitos acreditaram que aconteceria uma grande revolução, mas não houve sequer uma onda revolucionária.

TERCEIRA VIA

A terceira via foi um recurso desesperado de uma esquerda que, desgraçadamente, se viu sem ideais depois da implosão soviética. Digo desgraçadamente porque teria sido bom, para as democracias que funcionavam, a existência de uma esquerda lúcida, criativa e verdadeiramente progressista. Entretanto, em alguns países, a esquerda parece ter se esquecido de suas origens e tem atitudes dogmáticas até fascistas. Em vez de reconhecer que os sistemas coletivos, a violação de propriedade e os planejamentos excessivos prejudicam o desenvolvimento, as esquerdas querem voltar a esse tipo de coisa com fórmulas novas. Mas não são fórmulas que podem dar certo. Para ter êxito, é necessário atuar como os dirigentes chineses, que, sem deixar de se considerar comunistas, têm adotado medidas que aumentam a produtividade e a competitividade. Nem na China nem na Índia, onde há um verdadeiro milagre econômico e social, se fala de terceira via. Só na América Latina e na África. E assim vamos...

RETÓRICA ANTI-BUSH

A animosidade antinorte-americana é praticamente o último recurso que resta à esquerda arcaica. Nutre-se de uma curiosa mescla de inveja e frustração. Inveja porque os Estados Unidos são a superpotência mundial. E frustração porque essa superpotência não é a União Soviética, na qual foi depositada a ilusão de que superaria, com seu socialismo, a etapa capitalista-imperialista representada pelos Estados Unidos. O ódio é ideológico, não racional, herdado dos tempos da guerra fria. Pelo fato de estar no mesmo continente, os países da América Latina deveriam traçar estratégias para conseguir que a força e a riqueza dos Estados Unidos se voltem em benefício da região. Mas, em vez disso, os Estados Unidos são desprezados e levados a crer que deveriam ir se preocupar com outras partes do mundo. Os Estados Unidos precisam de nós menos do que precisamos deles. Isso, uma coisa tão simples, não vêem ou não querem ver Chávez, Morales e outros, que especulam com aquele entusiasmo típico de quem tem um inimigo claro sobre o qual pode botar a culpa de todos os problemas.

TRÁFICO DE DROGAS

Morales sempre foi a favor de legalizar o cultivo da coca na Bolívia e tem repetido que o problema do tráfico internacional de drogas não está em seu país, a Bolívia, mas nos Estados Unidos, o maior consumidor de entorpecentes do mundo. Eis aí um tema muito conflituoso. Acho que Evo Morales não tem muito espaço para se mover aí. Imagino que irá cumprir promessas que lhe criarão dificuldades. Mas, como não se trata de alguém previsível, teremos de esperar suas medidas. Se Chávez e Castro seguirem como seus principais conselheiros, e não surgirem pressões contrárias, anos difíceis virão para toda a região.

RELAÇÕES COM OS EUA

Percebo que os Estados Unidos têm mudado seu tipo de relação coletiva com a América Latina para relações individuais mais específicas. Nosso continente é muito diverso e também o são seus políticos. As relações dos Estados Unidos agora são diferentes com cada país. Por exemplo, acabam de tomar uma grande distância da Argentina como resultado da última cúpula em Mar del Plata, onde o governo argentino pareceu mais comprometido com a anticúpula do que com o encontro oficial.

NEOLIBERALISMO

O neoliberalismo ou liberalismo consistente é quase desconhecido na América Latina, África, países muçulmanos e todos os que sofrem de miséria. Ao contrário, é o sistema que prevalece nos governos socialistas ou conservadores do Canadá, da Europa e da Oceania, ou seja, onde existe uma firme democracia, estado de direito, transparência e Justiça independente. Na Argentina, por exemplo, durante a década de 90, não houve neoliberalismo nem liberalismo, mas populismo peronista, com privatizações corruptas que pagaram a festa. Jogar a culpa no neoliberalismo é como jogar a culpa nos marcianos. Durante o governo de Menem, não havia transparência administrativa, nem equivalência competitiva, nem luta contra os monopólios, nem combate à corrupção, nem sobriedade fiscal, nem estabilidade jurídica, nem independência dos poderes da República. Esses são os pilares do liberalismo que, precisamente na década de 90, brilharam por sua ausência na Argentina.

INDEPENDÊNCIA

Ignoro a situação do Brasil com respeito ao FMI. Mas a Argentina utilizou o cancelamento de sua dívida com fins políticos. Esse valor representa apenas 8,9% do total da dívida argentina. É quase nada. Mas fez muito barulho e custará ao Estado ficar com menos reservas. Há muito de demagogia aí. Além disso, é preciso ter cuidado com essa história de ser mais independente. Independente de quê? Os países europeus que entraram na União Européia e os que ainda desejam entrar sabem que vão se fazer dependentes de normas impostas. Devem aceitar o rigor fiscal, a luta contra a corrupção, o respeito à propriedade privada, a estabilidade jurídica. Devem aceitar auditorias. Se romper com esses conceitos é o benefício da independência, pobres de nós!