Título: O velho e bom cristianismo
Autor: Fred Melo Paiva
Fonte: O Estado de São Paulo, 25/12/2005, Aliás, p. J4

Jesus, aquele profeta itinerante da Galiléia, nascido, segundo a tradição, de uma mocinha virgem judia, é, sem dúvida, o personagem que mais influenciou a história nos últimos 20 séculos. Como costuma afirmar o português José Saramago, Prêmio Nobel de Literatura, que se professa ateu, ¿queira ou não, sou culturalmente cristão¿. Para comprovar a importância do profeta judeu, crucificado ainda jovem como rebelde político e religioso pelo poder romano que imperava na Palestina, bastaria tentar imaginar como seria hoje o mundo, sobretudo o Ocidente, sua ética, sua literatura, sua música, sua arte e até sua política, se Jesus não tivesse existido. Uma operação quase impossível de imaginar. Entretanto, a cada Natal ¿ uma festa cada vez mais de consumo que religiosa ¿, coloca-se o enigma do nascimento daquele profeta inconformista com a própria religião, a judaica, contestador dos poderosos de seu tempo, inspirador de uma doutrina tão radical em favor dos mais humildes e dos sem poder que, como alguém chegou a afirmar, ¿foi necessário criar uma igreja para combatê-la¿.

Uma pergunta indispensável, do ponto de vista histórico, é como surgiu um personagem como Jesus, de cuja existência se chegou a duvidar até o século 19, já que não aparece em nenhum documento da história não-religiosa de seu tempo. Ou melhor, existem apenas dois textos do historiador judeu Flávio Josefo, ambos de duvidosa credibilidade, e um do historiador romano Tácito, pretor e cônsul nascido em 56 d.C., também com pouco embasamento histórico. Nos restariam apenas os textos religiosos da Igreja para demonstrar que Jesus não foi um personagem mítico, e sim de carne e osso, ¿nascido de mulher¿, como escreve São Paulo.

Apesar da quase inexistência de provas históricas da existência de Jesus, é hoje consenso universal entre os historiadores, mesmo entre os mais agnósticos, a historicidade do personagem. Há a certeza de que o cristianismo se baseia não em um mito, mas em uma pessoa física, nascida mais ou menos no ano 5 de nossa era e executada sob o poder de Pôncio Pilatos quando devia ter entre 28 e 32 anos. Sua influência no mundo foi tão grande que chegou a mudar os relógios da história, já que hoje toda a humanidade se rege pelo calendário que começa com seu nascimento, ainda que, provavelmente, com um erro de quatro ou cinco anos. No entanto, não sabemos quase nada de Jesus, de sua família, sua infância e adolescência, até o começo de sua vida pública, aos 28 ou 30 anos. Sabemos tão pouco ¿ pois os evangelhos não são narrações históricas seguindo os parâmetros da moderna historiografia, mas textos religiosos, ainda que mesclados com elementos históricos ¿ que a própria Igreja teve de recorrer, às vezes, aos evangelhos apócrifos, considerados não-oficiais nem inspirados por Deus, para preencher algumas lacunas. Por exemplo, sabemos que os avós maternos de Jesus, os pais de Maria, chamavam-se Joaquim e Ana não pelos evangelhos canônicos, mas pelos apócrifos. Os canônicos tampouco dizem que os ¿magos¿ que levaram presentes (ouro, incenso e mirra) ao recém-nascido eram reis, nem que se chamavam Melchior, Gaspar e Baltasar. Isso só aparece nos apócrifos. Ou que José, o pai de Jesus, pode ter sido um viúvo com filhos de um casamento anterior quando se casou com Maria. Isso só está nos apócrifos.

Por não sabermos, não temos conhecimento nem de onde nasceu Jesus nem da data de seu nascimento. O mais provável é que tenha nascido em Nazaré. Hoje, todos os biblistas modernos concordam que não nasceu em Belém, como aparece, por exemplo, no evangelho de Lucas. Naquela época, as pessoas eram conhecidas pelo nome do lugar de nascimento ou pelo nome do pai. Ora, Jesus aparece em todos os escritos inspirados como ¿Jesus de Nazaré¿, nunca como ¿Jesus de Belém.¿

O mais provável, do ponto de vista histórico, é que quiseram fazê-lo nascer em Belém recordando a profecia bíblica de que o Messias deveria ser da estirpe do rei Davi e, como ele, nascer em Belém. Como não havia um motivo para José ter levado a esposa Maria de Nazaré a Belém, para dar à luz, criou-se a lenda de que César Augusto emitiu um decreto para que cada um fosse recenseado em sua cidade de nascimento. Ora, como se considerava que José tinha de ser descendente de Davi, ele também tinha de ter nascido em Belém, emigrando mais tarde para Nazaré. O que ocorre é que hoje está provado historicamente que esse recenseamento não existiu. Por isso, na revisão bíblica da história do cristianismo atualmente levada a cabo, fica cada vez mais claro que o chamado ¿relato da infância¿ pode ter sido criado com motivos mais ¿messiânicos¿ que históricos.

Isso não tira a importância do fato real do nascimento de Jesus. A importância não está no lugar nem na data de seu nascimento, mas na força que sua pessoa e sua mensagem tiveram e continuam tendo para milhões de pessoas no mundo inteiro. Lembro que o falecido João Paulo II comentou em um discurso, durante uma audiência pública, que a Igreja havia escolhido o 25 de dezembro como data para a celebração do nascimento de Cristo porque não conhecia a data certa. Escolheu-se o 25 de dezembro porque nesse dia se celebrava em Roma a famosa festa pagã do deus Sol. E o curioso é que, com o tempo, essa festividade do Natal, a mais importante da cristandade depois da Ressurreição, voltou a se ¿paganizar¿, como acaba de censurar, com razão, o papa Bento XVI. Em vez de os cristãos celebrarem a Boa Nova do nascimento de um dos personagens que chegou a mudar a cara mesma de Deus, apresentando um deus Pai, em vez de um deus Juiz, o Natal transferiu seus templos para os shoppings e supermercados. De uma festa de mistério religioso converteu-se no festival de consumismo. Na Espanha, meu país, um dos shoppings mais famosos, El Corte Inglés, faz sua publicidade nesses dias com o seguinte slogan: ¿O melhor Natal está no Corte Inglés¿. Direto assim. Pagão assim. Tudo isso leva os modernos teólogos e biblistas, neste momento, a estudar as origens históricas do cristianismo para chegar a suas verdadeiras raízes depois de séculos de mistificação decorrente, sobretudo, de suas conivências com os poderes de todos os tempos, a partir do século 4, quando a Igreja, de perseguida, passou a ser a religião oficial do Império Romano.

Hoje os teólogos se inclinam a pensar que a Igreja atual foi mais fruto de uma elaboração tardia de Paulo de Tarso, o intelectual judeu que foi perseguidor de cristãos e depois se converteu à causa de Jesus de Nazaré. A descoberta de importantes manuscritos como os evangelhos gnósticos, em 1945, no deserto do Egito, faz pensar que existiu um cristianismo de primeira hora, capitaneado pelas mulheres, tendo à frente Maria Madalena, considerada a grande inspiradora de Jesus, sua esposa e depositária de seus maiores segredos. A mulher para quem o dia da ressurreição aparece antes que a Pedro e que à sua própria mãe, algo que já causava dores de cabeça a Santo Tomás.

Hoje tudo leva a pensar que o primeiro movimento cristão, fundado por Jesus, era profundamente ¿feminino¿, pois as primeiras igrejas domésticas eram as casas das mulheres que, já então, oficiavam como sacerdotisas ou bispas. Algo que, pouco a pouco, a corrente de Paulo e Pedro, que acabou monopolizando o cristianismo, foi sufocando, a princípio com a perseguição dos gnósticos, como Madalena, depois com o esquecimento, até chegar à igreja ¿masculina¿ de hoje, a única instituição do planeta que ainda veda à mulher as portas da hierarquia e do poder.