Título: A mais mesquinha guerra santa
Autor: Fred Melo Paiva
Fonte: O Estado de São Paulo, 25/12/2005, Aliás, p. J4

Jingle Bells! Jingle Bells! Bimbalham os sinos! Ho! Ho! Ho! Tão imbuído estou do espírito natalino que até tomarei a defesa de George W. Bush. É meu Papai Noel para ele, Laura e a Casa Branca. Bush meteu-se em outra encrenca. Ou melhor, foi metido. Desta vez, Dick Cheney e sua cabala estão inocentes. Mas o fogo é amigo: de cabalas colaterais. A direita cristã, com seus evangélicos fundamentalistas e seus hidrófobos fariseus radiofônicos e televisivos, declarou guerra à Casa Branca e ao casal Bush por causa de um cartão de Natal. Nesse conflito, o governo é vítima e o presidente está do lado certo. O 11 de setembro desse bafafá fratricida foi a substituição da expressão ¿Merry Christmas¿ (Feliz Natal) por ¿Happy Holidays¿ (Boas Festas) nos 1,4 milhão de cartões natalinos expedidos este ano com a assinatura do presidente e da primeira-dama. Impressos pela Hallmark e financiados pelo Comitê Nacional do Partido Republicano, trazem na frente os animais de estimação do casal Bush ¿ dois cães e um gato ¿ brincando na neve. No lugar da manjedoura, a Casa Branca, coberta de neve. Nada de Menino Jesus, Jesus e Maria. Dentro, votos de ¿esperança e felicidade nas festas de fim de ano¿. E uma citação bíblica. Só que do Velho Testamento: um trecho do Salmo 28, em que Davi pede a Deus que castigue, implacavelmente, os que têm o coração ¿cheio de maldade¿. Nem no Natal Bush baixa a guarda.

¿Isso demonstra claramente que o governo capitulou aos piores elementos de nossa cultura¿, rosnou nas páginas do Washington Post o presidente da Liga Católica para Direitos Civis e Religiosos, William A. Donahue. Os ¿piores elementos¿ são os liberais, os agnósticos, os ateus e as lojas que, em suas campanhas de venda de fim de ano, preferem ¿Boas Festas¿ a ¿Feliz Natal¿. Bill Clinton passou oito anos enviando cartões sem nenhuma menção à palavra Natal, mas os fanáticos religiosos não eram seus eleitores, não tinham por que se sentir ¿traídos¿.

Outro indignado, Joseph Farah, editor do panfleto eletrônico WorldNet Daily, acusou Bush de abandonar suas crenças cristãs. ¿Foi declarada uma guerra ao Natal¿, alardeou a Fundação Heritage, uma espécie de Instituto Butantã do pensamento conservador. O picareta da evangelização Jerry Falwell não só passou as últimas semanas doutrinando seu rebanho de que o Natal ¿estava sendo perseguido¿ como ofereceu assistência legal a quem se sentisse atingido pelos perseguidores. Braceletes com a palavra de ordem ¿Just say `Merry Christmas¿¿ (Diga apenas ¿Feliz Natal¿) estão sendo vendidos ¿ por que não distribuídos gratuitamente? ¿ no site do Conselho de Pesquisa Familiar.

¿Expurgaram Cristo!¿, vociferou Tim Wildmon, presidente da Associação da Família Americana, um dos muitos templários da cruzada contra ¿o satânico ecumenismo¿ da Casa Branca e de gigantes do consumismo popular, como Sears, Wal-Mart, Staples, Home Depot, etc., todos no índex da patrulha evangélica. Se fossem cristãos de verdade, reclamariam da degeneração do espírito natalino pelo comércio. Ocorre que essa é uma velha ladainha dos liberais e nas prédicas da direita religiosa só cabem o supérfluo e o irrelevante. A histérica cruzada pró-Christmas começou em 2004, sem atingir a Casa Branca, pois só este ano Bush optou pelo ¿Boas Festas¿. À frente da campanha, o âncora do telejornal Fox News, Bill O¿Reilly, um dos paladinos da invasão do Iraque. Todas as noites ele anunciava: ¿O Natal está sitiado!¿ Com base em exemplos ridículos e dados manipulados ou forjados, transformou-se no Joe McCarthy do evangelismo.

Este ano o untuoso âncora voltou ainda mais agressivo ¿ e insidiosamente anti-semita. Pela contagem do jornalista Adam Cohen, entre 28 de novembro e 2 de dezembro O¿Reilly pôs no ar 58 segmentos contra os ¿conspiradores¿ anticristãos, incluindo na lista negra o financista George Soros, que comparou a Stalin. John Gibson, colega de noticiário de O¿Reilly, aproveitou a onda para escrever um livro: The War on Christmas (A guerra ao Natal), acusando a existência de um complô liberal contra a data magna da cristandade. Nunca se viu guerra santa mais mesquinha do que essa. Por trás dela, uma jogada para atrair dinheiro (com venda de livros, conferências, patrocínio para programas de rádio e TV, verbas para think tanks conservadores, etc.), impor a agenda da direita religiosa (doida para transformar os EUA numa teocracia, com preces compulsórias e a proibição de Darwin e sua teoria evolucionista nas escolas) e desviar a atenção do país de problemas mais sérios (o fiasco da guerra no Iraque, a corrupção no Congresso, a queda do prestígio de Bush e dos republicanos). Ademais, para que insistir no ¿Feliz Natal¿ num país com quase 70 milhões de habitantes que não se consideram cristãos e outros tantos que, embora o sejam, preferem a esbórnia do réveillon às sóbrias libações natalinas?

A direita religiosa já perdeu, esta semana, uma batalha importante para os evolucionistas. A guerra contra as ¿Boas Festas¿ é outra fadada ao fracasso. Não porque os liberais sejam mais fortes, mas porque a intolerância, como a mentira, tem perna curta.