Título: O Natal e os dilemas da fé
Autor: Fred Melo Paiva
Fonte: O Estado de São Paulo, 25/12/2005, Aliás, p. J4

Na casa de Maria Clara Bingemer, o Natal transcorre ligeiramente à antiga. Tem lá ¿um presépio bem rico¿, que ocupa o centro da sala. A árvore, relegada a segundo plano, é só ¿uma arvorezinha pequena¿. Maria Clara não compartilha desse Natal que parece ter perdido completamente seu sentido religioso. Verdade que não conseguiu escapar da ¿roda-viva¿ de despedidas/presentes/amigos secretos que normalmente antecedem a data. Mas, como católica que é, não se deixou levar pela onda ¿ sabe muito bem o que representa esse 25 de dezembro. Ou melhor, o que ele poderia representar mas não representa mais. Maria Clara Luchetti Bingemer, de 56 anos, é carioca, neta de italianos, catalães e portugueses ¿ o Bingemer é do marido, argentino. Filha única e neta idem, credita à falta de primos e irmãos o encantamento primeiro com a Igreja Católica, onde podia interagir e conversar. Mais tarde, recém-saída da graduação em Comunicação Social, ingressou de verdade no estudo da religião. Formada pela Faculdade de Teologia da PUC-RJ, foi por essa época que teve ¿um encontro decisivo¿ com Inácio de Loyola: ¿A experiência dos Exercícios Espirituais, método que Inácio deixou como legado à Igreja para buscar e encontrar a Deus em todas as coisas, passou a moldar minha maneira de rezar e de viver¿.

Mestre e doutora, Maria Clara Bingemer dedicou-se ao estudo de Santo Inácio e da Santíssima Trindade. Mas também à mulher e às relações de gênero, à mística inter-religiosa, à crise da modernidade e ao pluralismo religioso. É autora de mais de uma dezena de livros. Decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-RJ, é ¿radicalmente contra o aborto¿ e até compreende a condenação da Igreja ao uso camisinha ¿ mas acha que, se o cristianismo de Bush fosse a única ótica da fé, o resultado seria ¿catastrófico¿. E que ¿o diálogo entre a ciência e a fé é um tesouro que não se pode perder¿.

Na entrevista que se segue, Maria Clara fala das dificuldades da Igreja Católica em transitar num mundo que busca respostas imediatas ¿ e onde, segundo ela, a imagem de um supermercado é capaz de descrever com eficiência a relação dos homens com a religião. Um mundo que fez do Natal, e não só dele, ¿uma manifestação relegada a nenhuma importância¿.

A senhora concorda que o Natal perdeu seu sentido religioso?

Em geral, as pessoas esperam o Natal como quem espera o fim do ano acadêmico, o fim do ano de trabalho ¿ é um momento de festa, descontração, bebedeira, comilança e consumo. O que menos está importando, realmente, é a festa religiosa.

Isso simboliza a perda de fiéis que atinge a Igreja Católica?

A minha análise é outra. Há um processo de secularização em curso que já vem de longa data e se faz muito mais evidente nos países desenvolvidos. Aqui, o povo ainda é bastante religioso, sobretudo o mais simples. Então essa secularização demorou para chegar ao Brasil, mas ela está chegando ¿ especialmente nos meios urbanos, onde as pessoas são mais letradas e estão mais permeáveis aos meios de comunicação. E, na verdade, a televisão hoje atinge todo o mundo. Seja pobre, rico, esteja ele onde estiver, em qualquer ambiente a tevê penetra ¿ e com esse espírito da secularidade, que é o que já se chamou de ¿desencantamento do mundo¿, ou seja, esse mundo deixa de ser explicado pela religião e passa a encontrar sua explicação dentro de si mesmo. Para as pessoas, as causas dos acontecimentos não são mais divinas, mas históricas, frutos de processos sociais. Isso tem como conseqüência a recusa da tutela da instituição eclesial, a autonomia da ciência, a emancipação do saber. Claro que essa mudança afeta também o comportamento das pessoas. Antes, catedrais eram construídas para ensinar a religião, que era o centro da vida. Hoje os shopping centers e os grandes centros financeiros são as catedrais da pós-modernidade. A religião, por sua vez, vai ficando cada vez mais confinada a um segmento da sociedade. Esse processo, de qualquer forma, atingiu a capacidade da Igreja Católica de amealhar fiéis, não?

Esse não é um problema específico da perda de fiéis da Igreja Católica. É um processo mais global, de toda a sociedade. Além do Natal, outras festas, outros rituais, manifestações de outras ideologias e religiões, transcendentes ou não, estão relegados a nenhuma importância. Os rituais do socialismo real, por exemplo. Estive recentemente na Rússia e fui ao túmulo de Lenin. Antes, havia filas imensas, num verdadeiro ritual religioso ¿ hoje o espaço abre duas vezes ao dia, três vezes por semana.

A senhora considera de todo mau esse processo de secularização da sociedade?

Não. Acho que esse processo é inevitável e o cristianismo, na verdade, introduziu uma cunha secular dentro da religião. Ele puxa a transcendência das alturas para o meio da história. Tendo no centro de seu anúncio a encarnação de Deus ¿ um Deus que toma a carne, que se nega a fazer magia, mas diz que a presença do divino tem de ser encontrada no ser humano ¿, o cristianismo foi o primeiro promotor desse processo de secularização. Depois a Igreja vai retomar isso, quando anuncia que é muito mais importante dar de comer a quem tem fome, dar de beber a quem tem sede, do que celebrar 400 mil ritos. Até por isso tudo o processo de secularização não é de todo mau. Agora, o preocupante é que as instituições religiosas não estão sabendo lidar com ele de maneira a aproveitar o que tem de positivo. Ao contrário, elas estão sendo engolidas pela avalanche da ideologia de mercado, que vai transformando o homem não mais no sujeito pensante da modernidade, mas no sujeito consumidor que compra o tempo todo ¿ nas lojas, na internet, na televisão. A mensagem religiosa, e no nosso caso cristã, não está conseguindo se fazer audível por cima desse movimento tão forte.

Por que isso acontece?

Essa ideologia do mercado é muito mais imediatista do que a mensagem do cristianismo. Esta faz um apelo no sentido da fé, da entrega da vida, da abertura para o outro ¿ valores que não têm retorno imediato, sobretudo material. São valores nos quais se tem de apostar a longo prazo, mas que, se descobertos, dão sentido à vida. Está aí, aliás, a grande encruzilhada do ser humano hoje em dia: ele está vazio de sentido para a vida. Por isso a depressão é a doença do século, por isso tem tanto suicídio, tanta violência. O cristianismo e as religiões históricas ainda podem oferecer esse sentido à vida.

O crescimento das igrejas evangélicas no Brasil é resultado de uma atuação mais próxima dessa ideologia de mercado? Acho que tem muito disso, sim, com todo o respeito. Não quero julgar a intenção das pessoas ¿ aqueles que buscam as igrejas evangélicas e nelas ficam é porque encontram ali o que estão procurando. Mas, evidentemente, a proposta das igrejas pentecostais tem muito mais a ver com o imediatismo que as pessoas hoje querem. Lá elas fazem oração para conseguir emprego e descarrego para tirar demônio. São coisas que não exigem compromisso a longo prazo. E, se essas pessoas constatam que não alcançaram logo seus objetivos, mudam de igreja. Há duas imagens muito felizes para descrever o campo religioso hoje. Uma é a do supermercado: as pessoas vão pegando elementos de várias religiões e fazem sua própria síntese, sua cesta básica. A outra é a do trânsito religioso: se uma não tem mais nada a me oferecer, vou para outra ¿ é a religião também se tornando produto, tão descartável como são hoje as relações afetivas.

A figura de Jesus, sobretudo em função do Natal, inspira todo tipo de uso ¿ dos livros de auto-ajuda às estampas de roupas. É uma boa maneira de a religiosidade transitar dentro dessa lógica do mercado?

Não. Isso pode levar a uma banalização que não ajuda a promover o encontro verdadeiro com Jesus. Esse encontro só pode se realizar na oração, na busca gratuita do coração, da pessoa inteira ¿ não com estampas de camiseta. O desafio é hoje muito mais complexo do que já foi em outras épocas. Para os nossos avós, nascer brasileiro era quase sinônimo de ser católico. A minha geração já começou a romper com isso em algum momento da vida. Eu não o fiz por opção própria, mas se quisesse teria feito. Várias pessoas, no entanto, começaram a recusar aquilo que era quase que herdado sociologicamente ¿ e passaram a buscar algo que as satisfizesse plenamente. Assim, muitos foram para a luta armada, para outras ideologias. Alguns descobriram a ecologia. De todo modo, ainda foi uma geração que teve a chance de fazer um caminho mais sério e profundo, ainda que tenha saído da Igreja. Isso porque não havia esse bombardeio de hoje, esse frenesi consumista que nos atinge em casa ou nas ruas. Nunca a humanidade teve tantos meios à disposição. Mas os fins são muito pobres. E meios sem fins que valem a pena convertem-se em fins de si mesmo, o que é um grande perigo. Aí voltamos novamente ao Natal: as pessoas estão fazendo dele um meio, e não um fim.

Diante desse cenário, a senhora vislumbra algum caminho em que a Igreja Católica possa seguir conquistando fiéis?

O grande desafio da Igreja é poder proporcionar às pessoas uma experiência profunda de Deus ¿ Deus experimentado como sentido radical da vida, não uma experiência epidérmica que provoque sensações e êxtases passageiros. A partir daí, tudo é possível. Mas, não tendo isso, a norma não tem sentido, o dogma soa vazio, tudo se esboroa. (O teólogo alemão) Karl Rahner dizia: o homem do século 21 será um místico ¿ quer dizer, alguém que experimentou alguma coisa ¿ ou não será nada. Da mesma forma que o ser humano moderno só acreditava naquilo que pudesse comprovar com a razão, o pós-moderno só acredita na sua experiência.

Como a Igreja pode proporcionar essa experiência com Deus?

Um dos grandes méritos do papa João Paulo II ¿ e embora se possa divergir de outras coisas dele ¿ era seu carisma. A presença dele, as viagens que fez mundo afora, os encontros com os jovens, isso trazia muitas vezes esse efeito. Depois, sua morte mobilizou as pessoas e naquele momento muitos tiveram essa experiência com Deus. Há um mosteiro na França, o Mosteiro de Taizé, que está sempre cheio de jovens, uma coisa inexplicável. São pessoas afastadas da prática institucional da religião, mas vão lá porque as liturgias são muito bem-cuidadas, toda a parte da oração está montada para realmente fazer as pessoas experimentarem a gratuidade do encontro com Deus ¿ um Deus pessoal. Isso é importante, porque a modernidade tentou banir a transcendência, a religião, do horizonte humano. Não conseguiu ¿ a pós-modernidade resgatou essa transcendência. Mas ela não tem rosto, é difusa. Temos o grande desafio de apresentar um Deus que é uma pessoa com quem se fala, que interpela e desafia e cuja presença se sente. Hoje você pergunta a muitos jovens ¿quem é Deus para você?¿, e ouve respostas como ¿Deus é um fluido, é uma energia, uma força¿. Não aparece o Deus-pessoa. Portanto, essa experiência necessária deve ser o encontro com alguém. A partir daí, essa solidão em que o homem está mergulhado ficará preenchida. Somos seres relacionais ¿ só funcionamos na relação. Esse vazio de sentido é o vazio da relação. Por isso as relações são tão fugazes, desmoronam, são efêmeras, malsucedidas. O encontro com Deus na pessoa Jesus ¿ e o Natal seria uma ocasião privilegiada para estimular isso ¿ é o que vai fazer alguém ir adiante na sua fé.

A Igreja Católica aparece hoje muito marcada por posições consideradas retrógradas, ao mesmo tempo em que existe um cristianismo ao estilo George Bush. Um outro caminho é possível?

Deus me livre que a única ótica pela qual se pudesse olhar o cristianismo fosse a do Bush. Seria catastrófico... Bush tem alimentado a velha oposição entre criacionismo e darwinismo, que é agora objeto de discussão acerca de como deve ser ensinada a origem e evolução da vida nas escolas americanas.

O combate entre fé e ciência não isola ainda mais a Igreja?

O senhor Bush está pouco informado. Em um pronunciamento, o papa João Paulo II, ao mesmo tempo em que reabilitou Lutero e Galileu, reabilitou também Darwin. Disse que sua teoria era perfeitamente compatível com a fé cristã. E é claro que é. Temos grandes pensadores católicos que se inspiraram no darwinismo. Até sofreram no seu tempo, mas hoje estão perfeitamente reconhecidos pela comunidade católica. (O cientista jesuíta) Teilhard de Chardin é um deles. A Evolução não está absolutamente negando que Deus seja o Criador. Justamente nessa Evolução se vê a mão de Deus. Não necessariamente tem de ser tudo exatamente como o Gênesis diz ¿ há provas cabais de que essa narrativa é construída simbolicamente. O que a mensagem bíblica pretende não é transmitir conhecimentos científicos, e sim uma mensagem de salvação. Nisso ela é infalível. Mas, nos detalhes científicos, ela pode errar. O certo é que o diálogo entre a ciência e a fé é um tesouro que não se pode perder.

O papa Bento XVI criticou o consumismo do Natal e sugeriu que se montassem presépios para explicar e fomentar a fé católica. O que acha dessa sugestão?

Extremamente feliz. Porque a intenção do presépio é catequética. O ser humano aprende pelos sentidos. O presépio, mesmo para quem não sabe ler, faz visualizar o mistério da encarnação, que é o mistério central do cristianismo. Naquela simplicidade toda que é representada pelo presépio ¿ com seus pastores, uma gente pobre que não tem a menor importância na sociedade, com sua mãe, seu marido e o filho que acaba de nascer, mais as vaquinhas, os burros e os carneirinhos ¿, é nesse ambiente tão absolutamente simples que a fé cristã afirma estar a presença definitiva de Deus. Agora, ao invés disso, a cada ano temos uma árvore diferente no meio da Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro. Os símbolos foram trocados: quando se fala em Natal, não se pensa mais em presépio, mas na árvore e no Papai Noel. São coisas absolutamente exógenas, que não têm nada a ver com a nossa cultura ¿ é um absurdo uma árvore que só dá em países frios, esse pinheirinho de Natal. Fora o Papai Noel, vestido com aquela roupa vermelha com barra de arminho em plenos 40 graus. É um contra-senso total. Mas lá estão as crianças em volta dele, porque, afinal, é o presente que elas querem. Não tão antigamente, o centro da noite do dia 24 era o presépio. A maluquice do presente ia para o Dia de Reis, que é 6 de janeiro. Aí, sim, há um sentido cristão, já que o evangelho conta que, depois de um certo tempo que Jesus havia nascido, vieram três sábios do oriente ¿ três reis magos ¿ e ofereceram presentes. Mas não era essa maluquice em que se transformou o fato de presentearmos uns aos outros. As crianças perderam aquilo de colocar o sapatinho na janela no Dia de Reis, quando eles depositariam ali os presentes. Agora as crianças fazem listas. Estão ficando exigentes e tiranas. O Natal não é mais uma festa gratuita, pacífica. É uma festa de ansiedade e nervosismo.