Título: Uma realidade, duas perspectivas
Autor: Roldão Arruda
Fonte: O Estado de São Paulo, 25/12/2005, Nacional, p. A4

José Reinaldo de Lira e Cícera Bezerra dos Santos, ambos de 39 anos, têm muito em comum: são pequenos agricultores de Pernambuco e dependem do Bolsa Família (R$ 45,00 por mês) para sobreviver. Mas, enquanto Lira ¿vai vivendo como Deus quer¿ por falta de espírito empreendedor, Cícera reconhece, com orgulho, que está conseguindo prosperar e sonha em dar o benefício que recebe para quem precise mais. São dois retratos de beneficiários do maior programa social do governo ¿ o primeiro sem perspectivas de futuro e o segundo com chances de dar certo. Magro, franzino, ar abatido, casado, quatro filhos pequenos ¿ o mais velho tem 9 anos ¿, Lira já deixou a agrovila Cinco, onde mora, no interior de Ibimirim, no sertão, a 333 Km do Recife, duas vezes, fugindo da seca, em busca de trabalho em São Paulo. Na primeira vez, há 10 anos, ¿não mandou nem pipoca¿ para casa, atesta a mulher, Quitéria Maia de Oliveira de Lira, de 33 anos. Na segunda, há três anos, ele conseguiu enviar ¿um pouquinho¿ para os filhos.

Nas duas tentativas de melhorar de vida, Lira foi para Matão, interior paulista, para trabalhar na roça. ¿É só o que sei fazer.¿ Agora ele não quer mais sair de Ibimirim, um dos 11 municípios pernambucanos com o mais baixo Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do Estado. Adoentado, ainda tem mais sorte do que milhares de sem-terra. Tem um pedaço de chão e uma casinha. Quando o inverno (época de chuva) é dos bons, planta milho e feijão-de-corda ¿ o que dá para a família comer durante alguns meses.

Ele mora nas proximidades do Açude Poço da Cruz, que já foi o maior de Pernambuco, secou e voltou a encher com as fortes chuvas do início do ano passado. ¿A gente vive da boa vontade da natureza. Com o açude cheio nós nos animamos.¿

Mas não há data para a água do açude irrigar a agrovila. Quando chegar, através de um canal, Lira pensa em plantar também tomate e melancia. Com muito agrotóxico, senão ¿não vinga¿. Ele e a família vivem ¿desse negocinho¿ do Bolsa Família, por isso não passam fome. Quando aparece serviço nas terras dos outros, ele recebe R$ 10 por um dia duro na enxada. Se não, corta algaroba ¿ uma das árvores que resistem à estiagem ¿ para fazer lenha e vender. Embora possua um lote de três hectares, a terra não é trabalhada por falta de água, sua saúde não é boa e os filhos não têm idade para ajudar.

Em Águas Belas, 308 Km do Recife, Cícera Bezerra dos Santos, casada com José Ademílton Bezerra dos Santos, de 38 anos, quatro filhos, uma casinha, um chão de cerca de quatro hectares, duas vacas, acorda às 4h. O marido arranjou um bico numa roça próxima. Com ajuda do filho José Renato, de 13 anos, tira leite das duas vacas que comprou, com juros subsidiados, por intermédio do Sindicato dos Trabalhadores do município. Corta palma para alimentar os bichos, busca água, prepara o almoço no fogareiro.

No final do dia, Cícera conserta ou faz alguma roupa para os meninos. Sonha em ter uma máquina melhor e fazer um curso de corte e costura.

Ela recebe o bolsa-escola de duas crianças ¿ José Renato e Samara, 8 anos ¿ e o vale-gás. ¿Um dia, quando a gente progredir mais, vou dar o meu Bolsa Família para outro que precise, mas por enquanto é um dinheiro que não se pode dispensar¿, diz ela, ao lembrar que as vacas ainda precisam ser pagas e na época de seca tudo piora. Até pouco tempo, o pouco leite tirado dos animais era vendido a um atravessador. Com o resfriador colocado nas proximidades de casa, Cícera recebe por quinzena, mas por um preço muito melhor. ¿O carreteiro pagava R$ 0,30 o litro, com o resfriador a gente recebe R$ 0,47 o litro da associação.¿

Um total de 634 famílias participa da Associação dos Criadores e Produtores de Leite de Águas Belas. Onze dos resfriadores foram doados recentemente pelo governo estadual; os outros foram comprados pela comunidade com financiamento do Banco do Brasil. Com o equipamento, os produtores não precisam se submeter a qualquer preço oferecido por intermediários, nem perdem o leite, pois têm como armazenar o produto, que é comercializado para as fábricas de leite.

Cícera reconhece, com orgulho, que está conseguindo prosperar. ¿Nunca um filho passou fome.¿ Há pouco tempo o dinheiro que juntava para pagar o empréstimo foi gasto com o caçula, Rafael, de 3 anos, que adoeceu. O menino ficou bom. As finanças ainda não se recuperaram. Mas ela não desanima. Levanta as mãos ao céu, agradece o que tem e pede mais.