Título: Bolívia não seguirá caminho venezuelano
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Fonte: O Estado de São Paulo, 28/12/2005, Internacional, p. A10

Em 1781, um índio aimará, Túpac Katari, liderou um levante contra o domínio espanhol na Bolívia e sitiou La Paz. Ele foi capturado e morto esquartejado por quatro cavalos que o puxaram em direções opostas. Antes de morrer, profetizou: ¿Voltarei como milhões.¿ A julgar pela vitória esmagadora de Evo Morales, um aimará, nas eleições do dia 18 na Bolívia, ele cumpriu sua promessa. A eleição de Morales tem sido interpretada como uma confirmação de que a América do Sul está se movendo para a esquerda. Morales não esconde sua admiração por Fidel Castro e Hugo Chávez, e suas propostas incluem a nacionalização da indústria petrolífera, a redistribuição de algumas propriedades rurais privadas e a legalização de plantações de coca na região de Chapare. Ele se opõe à Área de Livre Comércio das Américas (Alca) e malha o ¿neoliberalismo¿.

Seria um erro, porém, pensar que Morales se tornará outro Chávez, mesmo que este seja seu desejo. O futuro presidente boliviano não terá os recursos de que dispõe a Venezuela, e sua base popular é mais instável. Além disso, o Brasil tem uma presença importante na Bolívia e estará em posição de exercer uma influência moderadora. Diferentemente da Venezuela, onde os preços estratosféricos do petróleo deram a Chávez uma fortuna que lhe permitiu construir uma forte rede social baseada no clientelismo, a Bolívia tem uma receita pequena. A única razão para seu resultado fiscal não estar revelando um déficit de US$ 1 bilhão é a ajuda externa, sobretudo dos EUA.

Pelo fato de os seguidores de Morales terem derrubado os dois presidentes anteriores e obrigados as autoridades a impor pesados royalties sobre companhias multinacionais que exploram gás natural, o investimento estrangeiro secou: somente US$ 84 milhões em investimentos entraram no país este ano. E a possibilidade de transformar subitamente as reservas de gás natural da Bolívia (potencialmente, um espantoso 1,5 trilhão de metros cúbicos) num rico veio exportador está inviabilizada pelo cancelamento de um projeto que previa a exportação de gás para o México e a Califórnia através de portos chilenos. (A Bolívia e o Chile têm se estranhado desde o final do século 19, quando a Bolívia perdeu seu acesso ao mar para o Chile na Guerra do Pacífico.)

A população indígena da Bolívia, que deseja resultados rápidos, também poderá manter Morales em xeque. Seu partido, o Movimento ao Socialismo, é um amálgama frouxo de grupos socialistas concorrentes. Se Morales tentar concentrar o poder, precisará de uma base de apoio permanente e sólida, que não está de maneira nenhuma garantida. Além disso, os habitantes de muitas províncias, especialmente no leste, estão lutando por autonomia local e advertiram que resistirão a tentativas de centralizar ainda mais poder em La Paz.

A Bolívia já teve governos de esquerda antes que foram derrubados pelas mesmas pessoas que os tornaram possíveis. O presidente Carlos Mesa, que substituiu Gonzalo Sánchez de Lozada em 2003 depois de manifestações violentas, tinha o apoio da população quando rejeitou os contratos de gás natural com investidores estrangeiros e comandou uma campanha virulenta contra o Chile. Mas as massas, mesmo assim, se voltaram contra ele, obrigando-o a renunciar em junho.

Finalmente, o pragmático presidente brasileiro, Luiz Inácio Lula da Silva, também poderia conter as ambições de Morales. O Brasil é hoje, de fato, o único investidor estrangeiro na Bolívia, e seu papel provavelmente vai se tornar ainda mais crucial por causa das promessas de Morales de nacionalizar o subsolo e manter os altos royalties sobre a exploração de petróleo e gás natural que têm mantido longe investidores de outros países. A Bolívia precisará, portanto, da Petrobrás, a gigante brasileira de petróleo, para expandir seus investimentos. Lula não tem sido capaz de frear Chávez, mas terá influência sobre o mais vulnerável Morales.

Evidentemente, a aproximação de Morales de Chávez vai depender, em parte, da política americana para a Bolívia. E isso, por sua vez, dependerá da atitude de Morales sobre a legalização do cultivo de coca. Se ele fizer isso, os EUA não deveriam reagir de forma exagerada, porque nada mudará muito. Mesmo com as restrições hoje existentes, já há tantas plantações em Chapare quanto a demanda por coca ¿ e a capacidade da Bolívia de transformá-la em cocaína ¿ asseguram. De qualquer modo, a produção e a distribuição de cocaína continuarão sendo proibidas na Bolívia, diz Morales. Se Washington responder à legalização da coca colocando obstáculos às exportações de roupas e jóias bolivianas para os EUA, dezenas de milhares de famílias em El Alto, uma das bases indígenas de poder de Morales, perderiam sua fonte de renda, e o sentimento antiamericano empurraria Morales para a esquerda.

Thomas Shannon, secretário de Estado adjunto para assuntos do Hemisfério Ocidental, disse-me recentemente que os EUA desejam eliminar suas medidas protecionistas restantes (que prejudicam algumas economias sul-americanas restringindo importações americanas de seus produtos). Poucos latino-americanos ouviram falar desse esforço. Se o objetivo é promover o desenvolvimento e melhorar as relações no hemisfério, eliminar políticas protecionistas será bem mais eficaz do que transformar a questão das plantações de coca na principal das relações Bolívia-Estados Unidos. Divisões políticas e tensões étnicas já constituem uma situação delicada nos Andes. Não devemos piorar isso.