Título: Resultado dá legitimidade a Morales
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Fonte: O Estado de São Paulo, 20/12/2005, Internacional, p. A12

Após a vitória expressiva, esquerdista critica autoridades eleitorais e a política dos EUA na região

A vitória do ex-líder cocaleiro Evo Morales, do Movimento ao Socialismo (MAS), nas eleições de domingo na Bolívia pôs fim a algumas incertezas que assombravam o país durante a campanha. Temia-se que o novo presidente não tivesse a legitimidade das ruas ou que ficasse longe de uma maioria no Congresso. Nada disso se materializou. Os 65 deputados e 12 senadores eleitos pelo MAS deixarão o futuro governo a apenas dois votos da maioria simples. Com mais de 51% dos votos, Morales conquistou a presidência já no primeiro turno e evitou um traumático segundo turno que aconteceria no Congresso entre os dois primeiros colocados.

Em seu primeiro discurso como presidente eleito, Morales não manteve o tom conciliador da campanha. Afirmou que a luta contra o tráfico de drogas é um falso pretexto usado pelos EUA para instalar bases militares no país. No domingo, logo depois de votar em Cochabamba, já havia reiterado que pretende remover os limites legais de cultivo de folha de coca no país. Esse é o tema que pode trazer mais problemas. O governo americano tem indicado que os programas de cooperação com a Bolívia dependerão da disposição do próximo presidente de reforçar as restrições à cultura da coca. "Observaremos o comportamento do governo boliviano para determinar o curso das relações bilaterais", disse ontem a secretária de Estado americana, Condoleezza Rice. "A chave é se o novo governo vai governar democraticamente e se está aberto à cooperação."

No discurso inaugural, Morales também acusou as autoridades eleitorais de tentar influenciar o resultado das eleições. No ponto mais controvertido da eleição, a Corte Nacional Eleitoral suprimiu das listas de votação milhares de eleitores que tinham se registrado, mas não compareceram na última eleição municipal, em 2004.

Morales qualificou sua vitória de triunfo dos "marginalizados e excluídos" da Bolívia. Emocionado, disse que cumpriria todas as promessas de campanha. Também pediu aos seus vizinhos que se unam simbolicamente na "pátria grande", sonhada pelo libertador latino-americano Simón Bolívar e pelo povo inca.

Morales chega ao poder como o primeiro indígena eleito presidente da Bolívia e com a maior votação já registrada em 20 anos. Não esconde sua admiração pelo presidente venezuelano, Hugo Chávez, e pelo brasileiro, Luiz Inácio Lula da Silva.

"Antes da votação, havia o temor de que o MAS fizesse uma bancada muito pequena, o que comprometeria a governabilidade", diz o professor de Ciências Políticas da Universidade Real de La Paz, Julio Mercado. A maior parte das reformas prometidas por Morales precisará ser aprovada por maioria de dois terços. Mas temas como a nacionalização do setor de gás e do petróleo devem contar com o apoio das demais bancadas. Da mesma forma, lembra Mercado, todos os partidos que estiveram envolvidos na eleição concordavam com a necessidade da convocação de uma Constituinte.

"O clichê que se ouviu no domingo à noite de que a eleição de Morales foi a expressão das vozes da 'Bolívia profunda' é verdadeiro, mas o MAS obteve também uma votação significativa nos centros urbanos como La Paz e, surpreendentemente, Santa Cruz", diz Mercado. "Esses centros estão fortemente vinculados aos sindicatos de trabalhadores, onde têm muito poder de pressão."

Os movimentos sociais que ajudaram a eleger Morales começaram a lançar já no domingo suas advertências: deram ao presidente eleito o prazo de um ano para tornar efetiva a nacionalização do setor de gás e petróleo, iniciar um plano de reforma agrária, licitar obras de serviços básicos e liberar o plantio da coca. Esses mesmos movimentos - que unem ativistas indígenas, sindicalistas, estudantes e associações de bairros - estiveram na vanguarda dos protestos violentos que derrubaram os presidentes Gonzalo Sánchez de Lozada, em 2003, e Carlos Mesa, em junho.

Os dois principais adversários de Morales nas eleições presidenciais - o ex-presidente conservador Jorge Tuto Quiroga e o empresário liberal Samuel Doria Medina - reconheceram a derrota e prometeram atuar na liderança de uma oposição "responsável e patriótica".

LULA

O Itamaraty informou numa nota que o presidente Lula abriu ontem a reunião do gabinete manifestando regozijo pela vitória de Morales e pelo "transcurso transparente e pacífico" do processo eleitoral. "O presidente falará com Morales nas próximas horas para desejar-lhe sucesso e reafirmar a disposição do Brasil de intensificar ainda mais as relações com a Bolívia", acrescenta o comunicado do Itamaraty, informando ainda que Lula convidará Morales a visitar o Brasil em data a ser definida.