Título: Socialismo indígena na Bolívia
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 20/12/2005, Notas e Informações, p. A3

A eleição de Evo Morales em primeiro turno foi uma boa surpresa, especialmente para o candidato socialista, representante dos cocaleros, que três dias antes do pleito estava negociando apoios e condições para disputar o segundo turno, que na Bolívia é resolvido pelo Congresso. E não era para menos. Desde a redemocratização da Bolívia, em 1982, as eleições presidenciais eram decididas em segundo turno, e já era hábito o Congresso não escolher, depois de demoradas composições entre todos os partidos, o candidato mais votado nas urnas. Por isso dissemos boa surpresa. É fácil imaginar as conseqüências que teria a eleição pelo Congresso do candidato derrotado nas urnas por Morales. Tudo, nessas eleições, surpreendeu. Esperava-se que Evo Morales fosse o mais votado, mas sem a maioria absoluta que ele acabou obtendo. Imaginava-se um pleito tumultuado - e ele transcorreu em monótona calma. Acreditava-se que o Movimento ao Socialismo (MAS) de Morales não obteria maioria no Congresso. Pois o MAS e alguns pequenos partidos aliados fizeram folgada maioria parlamentar.

Finalmente, esperava-se que Evo Morales aumentaria o tom de suas críticas ao governo norte-americano. Em vez disso, ele passou a dar uma no cravo e outra na ferradura. Primeiro, conclamou o presidente Bush a "retirar as tropas do Iraque e acabar com todas as bases militares na América Latina, pois não estamos em tempo de guerra". Depois, disse estar disposto a manter relações de respeito mútuo com os EUA, "sem relações de subordinação ou de submissão". E, por fim, declarou que "haverá cocaína zero, narcotráfico zero, mas não coca zero" . Se mantiver essa promessa, terá eliminado toda e qualquer possibilidade de atrito com Washington, que há muito reconhece a importância econômica e cultural do cultivo da coca pelos bolivianos, preocupando-se principalmente com o narcotráfico.

Evo Morales é o primeiro indígena a chegar à presidência da Bolívia. Sua eleição é a culminação de um tumultuado processo político que capitalizou descontentamentos de toda ordem - principalmente os das etnias locais e dos pobres das periferias das cidades - em torno de um socialismo primitivo e da idéia de retorno às organizações sociais pré-colombianas. Seu programa de governo pode ser resumido com enganosa simplicidade em: renegociar todos os contratos com empresas estrangeiras; nacionalizar o gás, o petróleo e as riquezas minerais; modificar a estrutura social do país, abrindo espaço para as comunidades indígenas; combater a pobreza e a exclusão social; avançar no processo de autonomia de alguns departamentos; convocar uma Assembléia Constituinte. Todas essas metas, se já seriam de realização extremamente difícil numa sociedade coesa, são praticamente impossíveis de alcançar num país profundamente dividido por diferenças étnicas, sociais e ideológicas.

Além disso, a Bolívia é extremamente dependente, até mesmo para pagar o funcionalismo público e o custeio de serviços essenciais, de ajuda internacional. E sua incipiente economia depende de investimentos estrangeiros, que certamente serão afugentados pelo socialismo rural pregado por Evo Morales.

Isso, aliás, já está acontecendo. A Petrobrás, que nos últimos dez anos investiu cerca de US$ 1,5 bilhão na Bolívia, e tinha planos para aplicar mais US$ 1 bilhão, desde o ano passado só investe naquele país o estritamente necessário para manter suas operações. A retração de investimentos aconteceu depois que foi aprovada a nova Lei de Hidrocarbonetos, que criou uma taxação de 32% sobre os resultados das empresas estrangeiras que exploram gás e petróleo e já pagavam 18% de royalties. Essa pesada taxação está proporcionando ao governo receitas de US$ 1,1 bilhão, contra US$ 200 milhões recebidos em 2004, mas ao custo da fuga de capitais.

Durante a campanha eleitoral, Evo Morales anunciou que nacionalizará - sem esclarecer de que maneira - as duas refinarias de petróleo que a Petrobrás opera em Cochabamba e Santa Cruz de la Sierra. O governo brasileiro espera que, dado o bom relacionamento entre o presidente Lula e Evo Morales, as duas plantas sejam compradas a preço justo. Há ainda a resolver a questão do contrato de fornecimento de gás ao Brasil, que vai até 2019.

O Brasil, como se vê, terá mais a perder com o socialismo indígena de Morales do que os Estados Unidos.