Título: Novo fiasco do Mercosul
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Fonte: O Estado de São Paulo, 29/12/2005, Notas e Informações, p. A3

O Brasil cedeu mais uma vez à Argentina e desistiu do livre comércio de veículos e autopeças a partir de 1º de janeiro. Mais uma vez ficará patente, perante o mundo todo, o fiasco do Mercosul como projeto de integração e de cooperação. O intercâmbio de produtos automotivos e componentes continuará sujeito a restrições.

Autoridades e empresários argentinos definirão regras para o jogo bilateral, como tem ocorrido normalmente há alguns anos. O governo brasileiro se curvará, como se apenas um lado tivesse interesse no entendimento e devesse, portanto, ser o único a ceder.

O governo argentino anunciou há meses duas decisões: 1) não aceitaria o livre comércio no setor automotivo a partir do começo de 2006; 2) recusaria a fixação de novo prazo para a liberalização setorial.

Ao mesmo tempo, continuou a defender a adoção de salvaguardas comerciais entre os países do Mercosul, com regras diferentes daquelas admitidas pela OMC.

O governo brasileiro tem esticado a discussão das salvaguardas, sem disposição para enterrar o assunto de uma vez por todas. Tem sido ainda mais passivo no caso do acordo automotivo. Esse acordo, em vigor a partir de 1995, foi rediscutido em 1999 e 2000. Uma versão revista entrou em vigor em 2005, moldada segundo exigências do governo e do setor privado argentinos, insatisfeitos com a fórmula original. Pelo novo esquema, haveria uma flexibilidade crescente nas trocas bilaterais. Em 2005, o país superavitário poderia exportar até US$ 2,6 para cada US$ 1 importado.

Novamente os argentinos se mostraram descontentes. Decidiram, além de rejeitar o livre comércio de produtos automotivos em 2006, exigir um novo acordo, com limites de comércio definidos não por valor total, mas por empresa.

A nova fórmula não está acertada. Por enquanto, os dois lados decidiram prorrogar o acordo por dois meses. Nesse período, poderão discutir um novo esquema. O objetivo central do governo argentino é conseguir, por meio de restrições comerciais, novos investimentos das montadoras em seu território.

Curiosamente, representantes do setor privado, no lado brasileiro, parecem aceitar como inevitável e perfeitamente natural a imposição do ponto de vista argentino. "O importante é que a prorrogação foi aceita, pois seria desastroso iniciar o ano sem regras definidas", disse o presidente da Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea), Rogelio Golfarb.

A declaração é estranha, pois haveria, sim, uma regra bem definida para aplicação a partir do próximo domingo. O artigo 13 do acordo em vigor inclui a seguinte norma: "A partir de 1º de janeiro de 2006 o comércio de produtos automotivos entre as Partes não terá mais tarifas nem limitações quantitativas."

Ao prorrogar as limitações por 60 dias, os dois governos implicitamente revogaram a cláusula relativa ao comércio livre em 1º de janeiro, mas, até aquele momento, a cláusula vigorava.

A partir dessa prorrogação, sim, é possível falar de uma confusão jurídica. Vale ainda a intenção de chegar ao livre comércio numa data definida? Essa data será o 61º dia?

Tão preocupante quanto a passividade de Brasília e dos empresários brasileiros é o desprezo mostrado por todos em relação a compromissos formais adotados em nome de dois países. Se regras dependem dos caprichos de uma parte, se o outro lado aceita qualquer imposição e se, enfim, o combinado não vale, para que gastar tinta, papel e esforço para produzir acordos?

Esse dado mostra, tão claramente quanto a sucessão de conflitos comerciais, o estado real do Mercosul. Sua tarifa externa comum é tão perfurada quanto uma peneira. O protecionismo é fato normal no comércio intrazona. Não há entendimento entre os sócios para acordos com parceiros de fora do bloco. Nem uma efetiva área de livre comércio os quatro países conseguiram formar. A conta dos desequilíbrios cabe a um único sócio. É hora de repensar essa estranha relação para se retomar, pelo menos, o princípio do respeito à palavra dos acordos. Sem isso, nada mais pode funcionar.