Título: A lição dos motins
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 29/12/2005, Notas e Informações, p. A3

Conhecido nacionalmente desde abril de 2004, quando presos rebelados exibiram-se em transmissão direta e ao vivo pela televisão, sacudindo cabeças de presidiários decapitados e jogando corpos esquartejados de cima de uma caixa d'água, o presídio Urso Branco, de Porto Velho, voltou a ser palco de mais uma tragédia. Desta vez, foi uma rebelião iniciada no domingo de Natal, com mais de 200 reféns, entre agentes penitenciários e mulheres e crianças que visitavam maridos e pais encarcerados. Três dias depois do início do motim, o governo de Rondônia não sabia confirmar a informação passada pelos amotinados de que haviam assassinado 16 pessoas, entre elas detentos jurados de morte e seus parentes. Terminada a rebelião, constatou-se que era um blefe.

O motivo da rebelião, que também resultou em destruição de instalações e equipamentos, acentua a banalização da violência criminosa. O motim não foi deflagrado como forma de protesto contra as condições degradantes de um estabelecimento prisional com uma população três vezes superior ao de sua capacidade, mas por um acintoso desafio ao princípio da autoridade e à ordem jurídica.

O que os presos reivindicam é o afastamento sumário de um dos promotores da Vara de Execuções Penais de Porto Velho, Amadeu Sirkoski Filho, conhecido por seu rigor, e a anulação do despacho judicial que ordenou a transferência de um presidiário para a penitenciária de segurança máxima Nova Mamoré, situado a cerca de 200 quilômetros da capital do Estado.

Esse não é um preso comum. Trata-se de Ednildo Paula Souza, o Birrinha, um criminoso extremamente cruel, que liderou a decapitação e o esquartejamento das 14 vítimas, na rebelião de 2004. Ele fugiu há 15 dias do Presídio Urso Branco, foi recapturado e agora se recusa a aceitar o regime disciplinar diferenciado previsto por lei, no qual não pode ter contato com outros presidiários. Birrinha acumula mais de 130 anos de pena privativa de liberdade por diversos crimes hediondos, entre os quais homicídio, latrocínio, roubo a mão armada e tráfico de drogas, e exige voltar para a prisão da qual escapou.

Para tentar afastar o risco de um banho de sangue ainda maior, a Secretaria da Segurança Pública de Rondônia se mostrou disposta a ceder às exigências dos amotinados e já transferiu Birrinha para a carceragem da Polícia Civil, na capital. E, para devolvê-lo ao Presídio Urso Branco, quer que, primeiro, os amotinados libertem os reféns. Em princípio, a estratégia era sensata, pois havia 203 pessoas sob ameaça. Mas, se Birrinha conseguir tudo o que pretende, inclusive o afastamento do promotor que cuida de seu caso, a autoridade do Ministério Público, da Justiça e das autoridades penitenciárias estará no chão.

"Os presos se reúnem, fazem uma greve e são atendidos. Se somente a greve não adiantar, fazem uma rebelião e conseguem o que querem. Do jeito que as coisas estão, atualmente, é muito melhor entregar logo a administração do Urso Branco. Aliás, eles já decidem até quem vai e não vai depor em delegacia e quem pode ficar fora das celas. Quem olhar bem verá que os apenados já estão mandando no presídio", afirma o promotor Sirkoski Filho.

Infelizmente, o que acontece naquele estabelecimento penal também vem ocorrendo em menor ou igual escala em várias outras penitenciárias do País. As sucessivas rebeliões, que chocam a sociedade por sua extrema violência, são deflagradas para reafirmar quem é que realmente manda no sistema prisional. Como afirmou o sociólogo José de Souza Martins em artigo publicado há alguns meses pelo Estado, sobre a crise da segurança pública, "o recado certeiro transmitido às autoridades e ao povo (é) de que temos governo, mas não tanto; temos polícia, mas não tanto; e temos Justiça, mas não tanto". A "repetitividade dessa violência" e a incapacidade do poder público de coibi-la resultam numa total inversão de valores.

"Temos a desordem regulando a ordem e temos a morte regulando a vida", conclui o sociólogo. Essa é a lição que as autoridades precisam extrair dessa rebelião. Quanto mais tempo se perder no restabelecimento do princípio da autoridade sobre o crime, seja ele organizado ou difuso, mais próximos estaremos do estado da natureza, onde a única lei é a do mais forte.