Título: O STF e a insegurança jurídica
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 24/12/2005, Notas e Informações, p. A3

As últimas decisões do Supremo Tribunal Federal (STF), tanto as tomadas pelo plenário quanto as advindas de atos monocráticos de seus ministros, têm um preocupante denominador comum: além de serem discrepantes entre si, anulando hoje o que havia sido decidido ontem e acolhendo amanhã o que foi negado hoje, elas pecam pela ausência de coerência doutrinária, demonstrando que o Supremo não tem uma diretriz normativa uniforme para balizar suas sentenças e conferir previsibilidade à sua atuação. Por isso, o STF se tornou nos últimos tempos uma fonte de insegurança jurídica. No plano político, basta ver o comportamento da corte no decorrer do processo de cassação do então deputado José Dirceu, quando ministros tomaram decisões desencontradas, outros mudaram de opinião no curso dos julgamentos e alguns fundamentaram seus votos com base em argumentos mais políticos do que jurídicos.

No plano econômico, a incerteza jurídica gerada por decisões conflitantes do STF acaba de ser evidenciada no caso da privatização do Banco do Estado do Ceará (BEC), que foi contestada por um sindicato, sob o argumento de que as contas dos servidores públicos cearenses não podem ser transferidas para bancos privados. Embora o STF tenha rejeitado esse argumento, por 8 votos contra 3, autorizando o Banco Central (BC) a vender o BEC, o relator do processo, ministro Marco Aurélio Mello, concedeu liminar suspendendo o leilão às vésperas de seu início. O detalhe é que, há dois meses, o presidente do STF, Nelson Jobim, havia autorizado o leilão, após revogar outra liminar concedida pelo relator.

O objeto do litígio dizia respeito à interpretação de um dispositivo da Constituição, no sentido de saber se ele restringe ou não o controle de caixa dos Estados a bancos oficiais. Trocando em miúdos, a Carta permite ou não a transferência, para instituições particulares, dos ativos do caixa do governo cearense? Contudo, em vez de julgar no mérito essa questão, o STF deslocou o debate para uma discussão de caráter processual e regimental.

Na liminar que concedeu esta semana, suspendendo o leilão do BEC, Marco Aurélio alegou que Jobim não tinha competência para ter cassado a primeira liminar. Pelo regimento interno do STF, diz o relator, o recurso do BC deveria ter sido distribuído entre os demais ministros. Com base nessa formalidade, Marco Aurélio derrubou a decisão de Jobim. Com isso, a venda do BEC foi suspensa outra vez, o que levou o BC a impetrar novo recurso. Desta vez, a vice-presidente da corte, ministra Ellen Gracie, cassou a liminar e autorizou o leilão, finalmente realizado.

Independentemente das eventuais rivalidades entre os ministros do STF, esse problema decorre do anacronismo da legislação processual. Ao prever um número excessivo de recursos, ela leva as discussões de mérito a serem suplantadas por questões procedimentais, o que abre espaço para as artimanhas e recursos protelatórios de advogados.

Esse é um dos principais defeitos do nosso sistema legal. Ele estimula a litigação sem, contudo, propiciar decisões rápidas, coerentes e previsíveis. No dia-a-dia do STF, além disso, a demora na pacificação de determinados entendimentos estimula o surgimento de teses criativas, em termos doutrinários, mas divorciadas da realidade econômica e política. É por isso que os ministros do STF deveriam, em vez de se apegar excessivamente às firulas técnico-jurídicas na interpretação de regimentos, valorizar nos julgamentos os objetivos e princípios do direito positivo.

Quem paga pela insegurança jurídica é toda a sociedade, pois a longa espera de uma decisão de mérito, a incoerência entre as sentenças e a ausência de uniformidade doutrinária geram tensões políticas, elevam os custos das transações e minam a confiança dos investidores, comprometendo a geração de empregos e bem-estar. Ao prolatar uma sentença, os ministros do STF não estão só dirimindo conflitos, mas, igualmente, fornecendo padrões normativos de referência sem os quais nem as instituições governamentais nem a economia conseguem funcionar de modo eficiente.