Título: A longa sombra da tortura
Autor: Vladimir Bukovsky
Fonte: O Estado de São Paulo, 24/12/2005, Internacional, p. A12

Numa manhã desagradável, o camarada Stalin descobriu que seu cachimbo favorito havia sumido. Ele, então, chamou seu lacaio, Lavrenti Beria, e lhe pediu que encontrasse o cachimbo. Poucas horas depois, Stalin o encontrou em sua mesa e cancelou a busca. "Mas, camarada Stalin", gaguejou Beria, "cinco suspeitos já confessaram o roubo." Essa piada, cochichada entre pessoas de confiança quando eu era um garoto em Moscou, nos anos 50, talvez seja a melhor contribuição que posso dar à atual discussão nos Estados Unidos sobre a legislação que proíbe a tortura e o tratamento desumano de suspeitos de terrorismo capturados no exterior. Agora que o presidente Bush endossou em público a emenda do senador John McCain, o debate aparentemente chega ao fim. Mas o mero fato de o debate ter ocorrido, com personalidades importantes dispostas a considerar a idéia, é desconcertante e alarmante para mim. Já vi o que acontece com uma sociedade que se encanta com tais métodos na busca por maior segurança. É preciso mais que palavras e compromissos políticos para reprimir o impulso.

Este debate é novo para os americanos, mas não é necessário reinventar a roda. A maioria das nações pode oferecer muita informação sobre o assunto. De fato, excetuando-se a peste, a tortura é o mais antigo flagelo de nosso planeta (por isso existem tantas convenções contra ela). Todos os czares russos depois de Pedro, o Grande, aboliram a tortura solenemente ao subir ao trono. A cada vez seus sucessores precisavam bani-la novamente. Esses czares estavam longe de ser homens de coração mole, mas a longa experiência do uso dessas práticas de "interrogatório" na Rússia lhes ensinara que a tortura, uma vez tolerada, destruiria seu aparato de segurança. Eles haviam compreendido que a tortura é a doença profissional de qualquer máquina investigativa.

Além da total frustração e de outras emoções ligadas à adrenalina, os investigadores e detetives em caçadas difíceis sofrem de uma enorme tentação de usar a força para subjugar suas presas, pois acreditam, metaforicamente falando, ter nas mãos um caso que representa uma "bomba relógio". No entanto, assim como um bom caçador treina seus cães para que lhe tragam a caça sem comê-la, um bom governante precisa impedir seus ajudantes de devorar a presa, ou então acabará de mãos vazias. A investigação é um processo sutil, que requer paciência e capacidade analítica refinada, assim como uma habilidade de cultivar fontes. Quando a tortura é permitida, essas pessoas talentosas e raras deixam o serviço, ofuscadas por colegas menos capazes com seus métodos apressados, e o próprio serviço vira uma diversão para os sádicos. Por isso, em seu auge, a famosa NKVD (polícia secreta soviética) de Josef Stalin não passava de um exército de carniceiros que aterrorizavam o país todo mas eram incapazes de elucidar o mais simples dos crimes. E, assim que a NKVD pegou o embalo, nem mesmo Stalin pôde contê-la. Ele só conseguiu isso ao voltar a fúria do órgão contra si próprio, ordenando a prisão de seu principal homem na NKVD, Nikolai Yezhov (antecessor de Beria), e seus aliados mais íntimos.

Assim, por que os líderes democraticamente eleitos dos Estados Unidos iriam querer legalizar aquilo que uma série de monarcas russos lutou para abolir? Por que correr o risco de desencadear uma fúria que até mesmo Stalin teve problemas para controlar? Por que alguém tentaria "melhorar a capacidade de coleta de inteligência" destruindo o que sobrou dela? Frustração? Inépcia? Ignorância? Ou a amizade com um certo ex-coronel da KGB, V. Putin, contaminou os líderes americanos? Não tenho respostas a essas perguntas, mas sei que, se o vice-presidente Cheney está certo e algum tratamento "cruel, desumano ou degradante" (CID, na sigla em inglês) de prisioneiros é uma ferramenta necessária para a vitória na guerra contra o terrorismo, então a guerra já está perdida.

A simples menção da possibilidade do uso de tratamento CID envia sinais equivocados e encoraja instintos básicos em quem deveria ser salvo da tentação pelos superiores. Como alguém que já foi alvo do "tratamento" em questão, digo que tentar fazer uma distinção entre tortura e técnicas CID é ridículo.

Foram-se os dias em que um torturador precisava das sórdidas ferramentas em exposição na Torre de Londres. Uma simples cama de prisão é mortal se você retira o colchão e obriga um prisioneiro a dormir sobre o estrado de ferro noites a fio. E quanto ao "aperto de mão do chekista (policial secreto)", tão disseminado sob Stalin - um firme aperto da palma da vítima com um lápis entre seus dedos? Muito conveniente, muito simples. E como vocês definiriam a prática de deixar 2 mil internos de um campo de trabalho forçado sem cuidar dos dentes durante meses? É CID não tratar uma dor de dente insuportável, ou é tortura?

Agora parece que a privação do sono é "apenas" CID e é usada contra os prisioneiros de Guantánamo. Parabéns, camaradas! Foi exatamente esse método que a NKVD usou para obter aquelas confissões nos julgamentos espetaculares promovidos por Stalin nos anos 30. Os carrascos chamavam o método de "transmissor" - o prisioneiro era interrogado continuamente durante uma semana ou dez dias, sem um minuto de sono. No fim, a vítima assinava qualquer confissão sem nem sequer entender o que estava assinando.

Sei, por experiência própria, que o interrogatório é um confronto intensamente pessoal, um duelo de vontades. Não se trata da revelação de alguns segredos ou de confissões, e sim de orgulho e dignidade. Se eu ceder, não serei capaz de me olhar no espelho. Se eu não ceder, meu interrogador sofrerá do mesmo modo. Apenas tente controlar suas emoções no calor dessa batalha. É justamente por isso que a tortura ocorre mesmo quando é explicitamente proibida. Quem vai garantir que até mesmo a mais exata definição de CID seja respeitada nessas circunstâncias?

Se não é possível garantir isso, como vocês poderão obrigar seus militares e seus jovens da CIA a cometer atos que os marcarão para sempre? Pois eles ficarão marcados, acreditem.

Em 1971, na prisão de Lefortovo (o centro de interrogatório da KGB, em Moscou), entrei em greve de fome exigindo um advogado de defesa de minha escolha (a KGB queria impor seu próprio advogado de confiança). O momento foi inconveniente para meus captores principalmente porque meu caso estava marcado para ir a julgamento e eles não tinham tempo a perder. Assim, para me derrubar, eles começaram a me forçar a comer de um modo bastante inusual - pelas narinas. Uns dez guardas me levaram da cela até a unidade médica. Lá, eles me puseram numa camisa-de-força, amarraram-me à cama e sentaram-se sobre minhas pernas, para que eu não me sacudisse. Outros seguraram meus ombros e minha cabeça enquanto uma médica introduzia o tubo de alimentação em minha narina.

O tubo era grosso, mais grosso que minha narina, e não entrava. O sangue saía de meu nariz e as lágrimas escorriam por meu rosto, mas eles continuaram empurrando até a cartilagem arrebentar. Acredito que eu teria gritado se pudesse, mas não podia, com aquele tubo na garganta. No início, não pude respirar; eu engasgava como um náufrago - meus pulmões estavam a ponto de explodir. A médica também parecia prestes a explodir em lágrimas, mas continuou empurrando o tubo mais e mais para dentro. Só quando ele alcançou o estômago eu pude recomeçar a respirar, cuidadosamente. Então ela usou um funil para despejar um líquido, que me sufocava quando voltava tubo acima. Eles me mantiveram deitado por mais meia hora, para que o líquido fosse absorvido pelo estômago e não pudesse ser vomitado, e então começaram a puxar o tubo aos poucos. Grrrr. Houve tempo durante a noite para que eu começasse a melhorar, mas eles voltaram de manhã e fizeram tudo de novo. O procedimento se repetiu por dez dias, até que os guardas não agüentaram mais. Era um domingo e não havia chefes por perto. Eles cercaram a médica: "Ei, ouça, deixe-o beber direto da tigela, deixe-o sorver. Será mais rápido para você também, sua boba." A médica chorava: "Vocês acham que quero ir para a cadeia por sua causa? Não, não posso fazer isso." E então eles subiram sobre meu corpo, praguejando uns contra os outros, com bolhas sangrentas saindo de meu nariz. No 12.º dia, as autoridades se renderam; seu tempo acabara. Eu conseguira meu advogado, mas a médica e os guardas nunca mais conseguiriam me olhar nos olhos.

Hoje, com os advogados da Casa Branca aparentemente buscando uma maneira de deter a onda de possíveis ações judiciais de ex-detentos, recomendo com firmeza que eles pensem em outra enxurrada de processos - dos militares ou agentes da CIA que foram ou serão envolvidos em práticas CID. Nossa rica experiência na Rússia mostra que muitos se tornarão alcoólatras ou viciados em drogas, criminosos violentos ou, no mínimo, pais e mães despóticos e agressivos.

Se os líderes americanos querem caçar terroristas e transformar ditaduras em democracias, precisam reconhecer que a tortura, que inclui os métodos CID, tem sido historicamente um instrumento de opressão, e não um instrumento de investigação ou coleta de inteligência. Nenhum país precisa inventar uma maneira de "legalizar" a tortura; o problema é como impedi-la de acontecer. Se não for impedida, a tortura destruirá a importante estratégia de sua nação para desenvolver a democracia no Oriente Médio. E se vocês cinicamente terceirizarem a tortura, por meio de agentes estrangeiros, como poderão ficar surpresos se um jovem de 18 anos do Oriente Médio olhar com amargura para seus esforços de reforma na região?

Finalmente, pensem no efeito de sua atitude no restante do mundo, especialmente nos países onde a tortura ainda é comum, como a Rússia, e onde os cidadãos ainda tentam combatê-la. Putin será o primeiro a dizer: "Vejam só, nem mesmo sua louvada democracia consegue se defender sem recorrer à tortura."

Lá vamos nós, de volta às cavernas.