Título: Casa de tolerantes
Autor: Dora Kramer
Fonte: O Estado de São Paulo, 16/12/2005, Nacional, p. A6

Câmara instituiu a vilania como norma de conduta e exibiu-se um Poder amoral Mais que tolerância com o crime de corrupção, a absolvição do deputado Romeu Queiroz - receptor assumido do dinheiro de origem ilícita do valerioduto - significou a instituição da vilania como norma de conduta na Câmara dos Deputados, que ontem amanheceu o dia na condição de um Poder amoral.

Não exibiu embaraço em defender o indefensável; não guardou resquício de pudor nem teve pejo de absolver o infrator contra a evidência da própria confissão, como se dissesse: a partir de agora, estejam todos autorizados a se envolver com operações financeiras suspeitas porque ao dono de mandato eletivo tudo é permitido. Locupletem-se, portanto, à vontade.

Não foi o quórum baixo o que salvou o réu confesso. Estiveram presentes 443 deputados, 250 votaram contra e 162 a favor da cassação; ainda que os restantes 70 deputados, do total de 513, tivessem comparecido e todos votassem com a condenação, não teriam sido atingidos os 257 votos necessários para fazer cumprir a decisão do Conselho de Ética sobre a quebra do decoro parlamentar.

O absolvido admitiu ter recebido R$ 350 mil, mas argumentou, e a Casa aceitou a alegação, que não pôs o dinheiro "no bolso", entregou ao PTB.

Ora, nem se tivesse entregue, como diz o deputado Roberto Freire, à ordem das seguidoras de Madre Teresa de Calcutá haveria justificativa para considerá-lo inocente. Freire conclama a sociedade a reagir - "Não só mandando e-mails para os deputados" -, sob pena de aceitar a revogação dos valores civilizados.

Os recursos distribuídos a partir das contas de Marcos Valério Fernandes de Souza, está provado, não foram oriundos de empréstimos. Sua origem permanece, pois, obscura e inconfessável.

Aceitar que o destino do dinheiro para o caixa 2 do PTB, para seu caixa 1 ou para causas nobilíssimas tenha o efeito automático da licitude, é acolher a lavagem de dinheiro no mundo da legalidade.

O que inocentou Romeu Queiroz foi a leniência de todos os parlamentares ante a armação dos envolvidos no esquema de compra e venda de apoios parlamentares mediante financiamentos ilegais de campanhas.

Ontem levantaram-se algumas - poucas, frente à gravidade da situação - vozes de deputados e senadores indignados com o resultado na votação do plenário.

Mas na noite anterior estavam todos lá, assistindo passivamente à construção da avenida que levará à absolvição dos outros deputados ainda na fila de cassações.

É um sofisma a declaração do presidente da Câmara, Aldo Rebelo, segundo a qual "cada caso é um caso" e serão examinados um a um sob critérios diversos.

Não obstante possa haver variação de método, não há diferença de mérito: o assunto em questão é um só, a quebra do decoro parlamentar pela adesão ao esquema de cooptação corrupta de parlamentares.

Ou José Dirceu não foi cassado por comandar o esquema? Ou Roberto Jefferson não perdeu o mandato por participar dele? Ou todos os outros não estão sob acusação exatamente pelo mesmo motivo?

A Câmara conseguiu a um só tempo fornecer sustentação a possíveis pedidos de anistia por parte dos cassados e absolver por antecipação todos os outros com processos em andamento.

De quebra, associou-se àquela parcela de magistrados do Supremo Tribunal Federal que não reconhece as prerrogativas do Conselho no tocante à condução de processos de lesão à ética e decretou extinta a razão de existir daquela instância corregedora da Câmara.

Não há mais sequer sentido na continuidade dos processos, pois as evidências, as provas e até a confissão foram substituídas pela convicção de que, cortadas as cabeças mais proeminentes, as outras poderiam ser mantidas pela ação conjunta de ativos e omissos irmanados na certeza do dever cumprido anteriormente e, por isso, desobrigados de se manter dentro dos limites da lei.

Infratora, então, exibiu-se a Câmara toda num ato suicida sem retorno. Para condenar qualquer um dos processados terá necessariamente de se reconhecer vil na votação de quarta-feira à noite.

Pode também aderir à tese do líder do PTB, deputado José Múcio Monteiro, de que a absolvição de Romeu Queiroz foi um "ato de coragem e justiça" da Câmara.

Esse mesmo deputado defendia antes a punição exemplar dos acusados, argumentando que se a Câmara não tomasse providências enérgicas, em 2006 o eleitor tomaria ele mesmo suas precauções. "Não volta ninguém para cá", previa José Múcio.

Considerando que suas noções de coragem e justiça foram também as adotadas pela maioria do colegiado, tomara esteja igualmente certo no que tange ao destino reservado pelas urnas aos que tão destemida e imparcialmente feriram de morte o princípio da representação popular, dando de costas à sociedade e decidindo de acordo com a conveniência da corporação.

Devem estar felizes todos os envolvidos nos escândalos, sejam eles deputados, senadores, assessores, dirigentes ou presidente. Resta saber se rirão por último.