Título: Santa paciência
Autor: Celso Ming
Fonte: O Estado de São Paulo, 16/12/2005, Economia & Negócios, p. B2

As negociações comerciais na Organização Mundial do Comércio (OMC) estão sempre beirando o fracasso. Um grande número de analistas atribui esse fato ao sistema de tomada de decisões lá adotado, sempre por consenso. O diabo é que não se encontrou sistema melhor. Com a incorporação da Arábia Saudita e de Tonga, a OMC passou a ter 150 membros com os mais variados e complexos interesses, difíceis de conciliar. Se um único país diz não, pára tudo. Na Conferência de Cancún, em 2003, foi a Botsuana, país africano de 1,7 milhão de habitantes, que provocou o empacamento final. A França agora está ameaçando vetar mais concessões na área agrícola. O diretor-geral da OMC, o francês Pascal Lamy, um campeão das negociações comerciais, tem-se queixado de que buscar a convergência está ficando quase impossível. O ex-chanceler Celso Lafer, que foi embaixador do Brasil junto à OMC de 1995 a 1998, conhece como ninguém o assunto e não vacila em afirmar que não há como mudar. Nas instituições fundadas em Bretton Woods, em 1944 - o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial -, o voto é proporcional à participação que cada país tem no capital dessas instituições. Se esse critério fosse usado na OMC, os votos seriam proporcionais à participação de cada país no comércio mundial. Isso geraria distorções. Uma seria obrigar um peso leve a boxear com um peso pesado. Os países ricos (Estados Unidos, União Européia, Japão e agora a China), com participação conjunta de 38,3% no comércio, massacrariam o resto do mundo e imporiam a lei do mais forte. Distorção de outro tipo seria atribuir a países de maior densidade econômica e política um peso baixo demais. O Brasil, por exemplo, detém uma fatia de apenas 0,8% no comércio mundial. Se valesse esse critério, Cingapura, com participação de 1,8%, teria mais votos. Mas a rejeição do sistema de ponderação de votos não se deu porque provocaria distorções. Explica Celso Lafer: "O grande ativo da OMC são regras do comércio, cuja aplicação transcende cada fronteira, como é o caso das regras fitossanitárias ou das normas técnicas. Essas regras só podem ser aplicadas se forem compartilhadas por todos. Aí, o voto ponderado não funciona. A necessidade de legitimação exige consenso." Um terceiro sistema seria o de "cada país, um voto" que prevalece na ONU, onde certas decisões são tomadas por maioria. Mas na própria ONU os temas relevantes que contrariam o interesse dos animais de grande porte não são levados a plenário, mas decididos no Conselho de Segurança, onde só os grandes têm voto e poder de veto. Como as decisões por consenso são de aplicação complicada, a prática se encarregou de inventar mecanismos de convergência. No passado, as decisões relevantes foram tomadas pelo chamado Quad (quadrado) entre os grandes. Estados Unidos, União Européia, Japão e Canadá se reuniam num salão verde (green room) e de lá saíam com as soluções que o resto do mundo tinha de engolir. Ao longo da Rodada Uruguai (negociada de 1986 a 1994) surgiu a primeira oposição de peso, o Grupo de Cairns que reuniu os países em desenvolvimento com grande capacidade de produção agrícola. Mas foi em Cancún que apareceu a grande novidade: o Grupo dos 20, liderado por Brasil, Índia e China, que se opôs ao jogo desenvolto dos países ricos. Hoje, há grupos para todo gosto entre os quais os países se distribuem, muitos deles em vários, dependendo do assunto e do interesse. A Índia, por exemplo, fecha com o Brasil em alguns assuntos agrícolas, mas não em serviços. A China está no Grupo dos 20, com o Brasil, mas às vezes alinha-se com os países ricos. São as tais coligações de geometria variável. A construção de consenso é um processo complexo. As grandes diferenças de interesse são prontamente identificadas. Em seguida, essas diferenças são digeridas em comitês restritos e, à medida que os acordos ganham alguma costura, esses comitês se encarregam de conquistar adesões. Isso custa tempo, paciência e muito empenho. Até agora ninguém inventou sistema melhor.