Título: 2006 - a hora da verdade na OMC
Autor: Marcos Sawaya Jank
Fonte: O Estado de São Paulo, 03/01/2006, Espaço Aberto, p. A2

2006 - a hora da verdade na OMC Marcos Sawaya Jank A cobertura da mídia brasileira sobre temas de política comercial e negociações é intensa e permanente. No resto do mundo, tenho observado que a cobertura é bem menos freqüente e mais objetiva, já que o jornalista dispõe de mais tempo e menos espaço para elaborar a sua matéria ou artigo de opinião. Os grandes jornais brasileiros contam com um pequeno grupo de jornalistas dedicados, que dominam o assunto e escrevem quase diariamente. No entanto, se analisamos a mídia brasileira de forma mais ampla (revistas, televisão, etc.), veremos muitas notícias exageradas, que por vezes pendem para o sensacionalismo ou para uma perigosa análise emocional. Para usar a linguagem corrente do futebol, uma cobertura com lances de jogo Fla-Flu. Talvez isso ocorra porque é difícil resumir um assunto tão complexo em poucas linhas ou minutos, talvez porque as fontes de informação costumem pintar o cenário com cores extremas, exageradamente vibrantes ou apagadas. Um bom exemplo foi a recente Reunião Ministerial da Organização Mundial do Comércio (OMC) em Hong Kong, que resultou num texto hermético, extremamente técnico e de poucos avanços reais. Os mais otimistas dirão que Hong Kong teve o grande mérito de manter as negociações da Rodada de Doha nos trilhos, já que, ao contrário de Cancún em 2003, a reunião terminou com um texto de 11 páginas que: 1) reafirma o Mandato de Doha e a estrutura de trabalho aprovada em meados de 2004; 2) decide pelo fim dos subsídios agrícolas sobre exportações e medidas equivalentes na área de créditos à exportação, abuso da ajuda alimentar e empresas estatais de comércio até o final de 2013, o que reduz agora o complexo tema da agricultura a apenas dois pilares: acesso a mercados e subsídios domésticos.

Já os mais pessimistas dirão, igualmente com razão: 1) que o tempo que sobra para fechar a rodada é extremamente exíguo; 2) que os grupos protecionistas do mundo desenvolvido vão impedir que Genebra produza cortes além do status quo das políticas vigentes em Washington, Bruxelas e Tóquio; 3) que os países em desenvolvimento tampouco aceitarão uma redução efetiva da proteção corrente em agricultura (Nova Délhi, Pequim, etc.), bens manufaturados (Brasília, Buenos Aires, etc.) e serviços.

Para entender o que de fato ocorreu em Hong Kong é preciso, primeiro, abandonar o Fla-Flu midiático do "ganhamos" ou "perdemos" ou, no máximo, "reduzi-lo à comemoração de um lateral favorável no campo de defesa", como afirmou ontem Marcelo de Paiva Abreu, no Estado (B2). Na realidade, a OMC está mais para o xadrez do que para o futebol. Trata-se de "partidas simultâneas" entre as principais coalizões que se foram formando, sempre guiadas pelo mais puro mercantilismo comercial, que produzirão um resultado global, e não por país.

A grande verdade é que Hong Kong não permite comemoração, já que tudo o que mais nos interessa ficou para este ano, que promete ser muito mais quente do que tudo o que se viu até aqui. A implosão do pilar dos "subsídios à exportação e medidas equivalentes" - que equivale a menos de US$ 5 bilhões em gastos governamentais no mundo - já havia sido decidida em 2004, sendo que a data de 2013 dá a flexibilidade de que a União Européia (UE), a principal usuária, precisava.

Os dois assuntos de maior interesse do agronegócio brasileiro continuam parados sobre a mesa. Pouco se avançou nos cortes e disciplinas dos US$ 108 bilhões em subsídios domésticos que são transferidos aos agricultores a cada ano pelos países desenvolvidos - UE, EUA e Japão, na liderança. Não houve também avanço algum nos itens ofensivos de acesso a mercados agrícolas em países desenvolvidos. Pior, no caso dos países em desenvolvimento, que já representam mais da metade de nossas exportações, consolidou-se a inclusão da categoria dos "produtos especiais" - que não sofreram cortes tarifários - e de salvaguardas que podem criar proteções automáticas adicionais sempre que os preços mundiais caírem ou as quantidades importadas aumentarem de forma abrupta.

Há riscos reais de retrocesso na regulamentação destes dois novos instrumentos de proteção agrícola em 2006, que interessam à grande maioria dos 120 países em desenvolvimento que se uniram na reunião para mostrar afinidades hoje improváveis. Foi o Brasil que comandou esta tática, mas é preciso ter absoluta clareza de que, em agricultura, poucos são os países que comungam dos nossos interesses ofensivos e que a idéia de que também teríamos interesses defensivos a zelar, defendida pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário, não resiste a dez minutos de conversa séria em cima dos cortes e disciplinas que estão sendo negociados (ver o meu artigo de 5/7/2005 no Estado). Como a locomotiva agrícola quase não saiu do lugar em Hong Kong, as demais áreas em negociação (bens manufaturados, serviços e regras) também ficarão à espera de 2006.

Graças à incontestável liderança do ministro Amorim no G-20, o Brasil é hoje um dos três ou quatro países mais influentes da negociação agrícola. O problema é que os países que cerrarão fileiras conosco até o final do jogo podem ser contados nos dedos das mãos e blefes dos outros e/ou táticas equivocadas podem pôr tudo a perder. Em suma, já passados quatro anos desde o início formal da rodada, em 2001, ainda há pouco para comemorar e muitos icebergs à vista. Em 2006, o agronegócio vai continuar apoiando tecnicamente o governo em cada novo lance da partida. A esperança do setor é que o comércio agrícola diminua, de fato, a distância que o separa das regras hoje vigentes para bens manufaturados, propriedade intelectual, subsídios e outras áreas em que se avançaram quilômetros durante meio século de negociações multilaterais. O ano de 2006 será a "hora da verdade" na OMC e a prioridade brasileira tem dois nomes ("cortes de subsídios domésticos" e "abertura efetiva de mercados para produtos sensíveis"), com o mesmo sobrenome ("agricultura").