Título: Kirchner paga o FMI
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Fonte: O Estado de São Paulo, 21/12/2005, Notas & Informações, p. A3

O tom essencialmente político que o presidente argentino, Néstor Kirchner, deu ao anúncio da liquidação antecipada da dívida de US$ 9,81 bilhões com o FMI mostra que ele não foi inspirado pelos mesmos motivos do governo brasileiro, que dias antes anunciara medida semelhante.

Efetivamente, as duas decisões têm razões e objetivos diferentes. Em primeiro lugar, o Brasil tem reservas cambiais que permitem pagar o FMI sem correr qualquer risco de crise cambial. A decisão brasileira foi tomada por razões técnicas, a partir de condições objetivas que a aconselhavam. Já a Argentina tomou a sua decisão por razões políticas, sem as mínimas condições para fazer isso sem ficar exposta a uma crise cambial.

Essas diferenças se refletem na maneira como cada decisão foi anunciada. O governo brasileiro o fez por meio de nota do Ministério da Fazenda, seguida de entrevista do presidente do Banco Central, Henrique Meirelles, em que foram expostas a razões técnicas que recomendavam a quitação antecipada da dívida.

O argentino, ao contrário, transformou o anúncio numa festa política. Os governadores provinciais, importantes empresários, líderes sindicais e de organizações civis como as Mães da Praça de Maio foram convocados às pressas para uma solenidade na sede do governo. Kirchner acusou o FMI de fazer "exigências e mais exigências contraditórias entre si e com o crescimento econômico"... "Com esse pagamento, estamos sepultando boa parte de um passado de ignomínia, de endividamento infinito e de ajuste interno."

Mas Kirchner vai ter enormes dificuldades para honrar os compromissos financeiros e assegurar a estabilidade e o crescimento da economia. Medidas legais que dependem de aprovação do Congresso serão necessárias para se fazer o pagamento antecipado. A montagem de um plano financeiro é outra exigência prévia. Para assegurar que as reservas continuem a lastrear o dinheiro em circulação no país, como determina a lei, o governo não poderá utilizar mais do que US$ 8,6 bilhões delas. Faltam pelo menos US$ 1,2 bilhão para liquidar os compromissos com o FMI e não está claro de onde virá esse dinheiro.

Dessa questão Kirchner não tratou em seu pronunciamento. Seus aliados preferem destacar que, agora, o presidente argentino terá as "mãos livres" para agir. O risco está justamente aí. O relacionamento entre o governo argentino e o FMI foi marcado por muitos atritos porque, com o objetivo de assegurar eficiência à política econômica do país, o Fundo rejeitava a proposta de Kirchner de combater a inflação por meio de controle de preços; forçava a correção de tarifas públicas aceitável para os investidores; e advertia para o risco de descontrole das finanças das províncias. Além disso, o FMI insistia para que o governo argentino completasse a renegociação de sua dívida externa, fixando novos critérios para os credores que não aceitaram as condições impostas por Kirchner e ficaram de fora do acerto concluído há alguns meses.

É disso que Kirchner quis escapar. Sua afirmação de que, com a liquidação da dívida com o FMI, a Argentina se livra de um passado marcado, entre outros fatos que considerou negativos, por "ajustes internos" sugere que, agora, se considera desobrigado de buscar o equilíbrio das contas públicas.

Mas, sem um severo programa fiscal, será difícil o país obter recursos para honrar seus compromissos. A Argentina reduzirá suas reservas a um nível perigoso para pagar o FMI, mas continuará com uma dívida muito alta. Já descontada a parte do Fundo, ela chega a US$ 115 bilhões (ou quase US$ 140 bilhões, se incluídos os credores que não aceitaram as condições de renegociação). Para outros credores, como o Banco Mundial, bancos e investidores privados, terá de pagar em 2006 cerca de US$ 8 bilhões. Kirchner conta com o crescimento econômico. A economia cresce em ritmo acelerado, de fato. No terceiro trimestre, a expansão foi de 9,2% sobre igual período de 2004. Mas a escassez de investimentos pode gerar gargalos, conter o crescimento e pressionar ainda mais a inflação, que, anualizada, já chega a 12%.