Título: Rombo de R$ 7 mi torna crítica a situação de maternidade-modelo
Autor: Simone Iwasso
Fonte: O Estado de São Paulo, 18/12/2005, Vida&, p. A24

Amparo Maternal, onde 85% dos partos são normais e nenhuma paciente é recusada, depende do SUS e de doações

Lá, os bebês não marcam hora para nascer e o fluxo de mulheres grávidas oscila como as contrações do parto. Pelos portões sempre abertos, elas passam como quem cumpre o fim de uma peregrinação - de nove meses de gestação e horas de ronda por um leito. Em cada sala, quarto e corredor do Amparo Maternal, a maior maternidade de São Paulo, localizada na zona sul da cidade, duas verdades são escancaradas: não se recusa ninguém e não há mais como segurar a dívida financeira por isso. Dependente apenas do repasse do Sistema Único de Saúde (SUS) e de doações, a instituição está numa situação insustentável : há um rombo de mais de R$ 7 milhões e um prejuízo mensal de R$ 300 mil, que quase levou ao corte do fornecimento de luz e à paralisação dos médicos e funcionários, o que pode pôr fim a um trabalho de humanização do parto tido como de referência para o Ministério da Saúde. Uma crise que fez que a maternidade abrisse uma campanha, liderada pela Arquidiocese e por empresários, que prevê doações, mudanças na gestão e a transformação do local em um hospital-escola.

"Não recusamos paciente nunca. Se recusarmos, não haveria razão de existir uma obra dessas", afirma irmã Anita Gomes, presidente do Amparo. "O conceito implantado aqui é o de não fazer nada que não for estritamente necessário para o parto", diz o médico Renato Abreu Filho, diretor-técnico do local. Duas afirmações que sintetizam o trabalho da casa: o atendimento à mulher pobre e a busca pelo parto normal, sempre que possível.

A prática traz resultados numéricos: lá, 85% dos partos são normais - nos hospitais particulares do País, cerca de 90% são cesáreas. São registrados 2,5 mortes para cada mil nascimentos (em São Paulo, o índice está em 14). Além disso, cerca de quatro em cada dez mulheres tentou uma vaga em outros hospitais da Grande São Paulo antes chegar ao Amparo.

"A gente se sente acolhida, faz mudar a cabeça. Eu vim para cá decidida a dar o bebê e sumir", conta Marli Rodrigues Souto, de 27 anos, que chegou ao Amparo com sete meses de gestação, após ser despedida de seu trabalho como empregada doméstica justamente por causa da gravidez. "Eu morava na casa da minha patroa e fiquei sem ter onde morar. Aí me abrigaram aqui, no abrigo deles. Agora que minha filha nasceu, vou voltar para Ilhabela, onde está minha família. Mudou toda a minha vida e seria muito triste se outras perdessem essa oportunidade."

Para elas, que chegam andando sozinhas, encaminhadas por outros hospitais, pelos carros da polícia, dos bombeiros, por assistentes sociais, e não importando de qual cidade ou região, há sempre uma vaga - seja para a hora do parto, para morar durante a gravidez ou mesmo para fazer exames de pré-natal.

Uma vez entre os arcos da casa projetada há 76 anos para ser um abrigo para mães carentes, elas aprendem a controlar a respiração, são postas numa banheira para relaxar, recebem massagens e aprendem a importância do parto normal. Além disso, evitam procedimentos comuns em grandes hospitais, como a lavagem intestinal, a anestesia, o jejum e a tricotomia (raspagem dos pêlos pubianos).

CONTINUIDADE

São 150 leitos - cerca de 60 a 70 mulheres internadas diariamente. E grande parte com um perfil muito específico, que deu ao local a fama de "casa da mãe solteira". Assim como Marli, 76% são solteiras, 35% foram lá para ter o primeiro filho e têm entre 16 e 20 anos. A maioria é dona de casa ou empregada doméstica e 42% não chegaram a completar o ensino fundamental.

Nos quartos, que são compartilhados, ficam ao lado do bebê. As alas são separadas entre as que tiveram parto normal e as que precisavam passar por uma cesárea. Há ainda a UTI neonatal, para os casos mais graves.

"Ele se chama Cauê e está aqui há uma semana. Teve falta de oxigênio e nasceu prematuro", conta Kelly Regina dos Santos, uma dona de casa de 19 anos que procurou a instituição para ter seu segundo filho. Ela passa o dia todo com a criança, ainda na incubadora.

Ela vê o entra-e-sai de mães, de carrinhos de bebê, de mantas cor-de-rosa e azuis sendo levadas, doadas, trazidas pelo grande grupo de voluntários que ajuda a manter a casa.

Na portaria, há momentos de calmaria e outros de agitação, quando chegam várias mulheres em trabalho de parto de uma só vez.

"Tem dias que chegamos aqui às 13 horas e vamos embora de madrugada. É um parto atrás do outro", conta Silvana Martins, de 43 anos, uma das voluntárias que atua como doula - mulher que, após passar por um curso, fica capacitada para dar apoio às gestantes antes, durante e depois do parto. Quando a mãe tem alta, podem ir ao cartório que fica dentro da instituição e já sai de lá com a criança registrada.

HISTÓRIA

Fundado em 1939 para abrigar mães solteiras que tinham o filho na rua - na época, os hospitais só aceitavam quem tivesse registro profissional -, o Amparo foi criado pela união de forças e verbas do município e da Igreja Católica. O que era para ser apenas um abrigo pela necessidade se tornou uma maternidade. Que cresceu, inchou, recolheu mulheres que ninguém atendia e, justamente por isso, sempre dependeu de doações.

Atualmente, o Amparo gasta R$ 900 mil por mês - o SUS repassa cerca de R$ 600 mil. "Tentamos empréstimo com bancos e eles não nos aceitaram porque tínhamos a ficha muito suja", diz irmã Anita, que explica que a maior parte da dívida atual é com o governo.

Agora, um grupo que une o arcebispo d. Cláudio Hummes, o vereador Paulo Teixeira (PT) e o presidente da Bolsa de Mercadorias e Futuros (BM&F), Manoel Felix Cintra Neto, elaborou um plano de gestão para a maternidade - e lidera uma campanha de arrecadação que já conta com o apoio da Fiesp e da Febraban.

"Além de pagar a dívida, procuramos uma solução definitiva. Acredito que em até três meses conseguiremos isso", diz o presidente da BM&F. Outra frente é aproveitar que o local já é referência para treinamento de parto humanizado e transformá-lo em hospital-escola, o que aumentaria os repasses do Ministério da Saúde.