Título: A invasão do Iraque teve efeito bumerangue
Autor: David E. Sanger
Fonte: O Estado de São Paulo, 18/12/2005, Internacional, p. A16,17

No dia 29 de janeiro de 2002, ficou famosa a declaração do presidente americano, George W. Bush, que indicou os três países do "eixo do mal": Coréia do Norte, Irã e Iraque. O número de palavras que dedicou a cada um deles revelou uma boa dose de suas intenções: 17 para a Coréia do norte, 19 para o Irã e 84 para o Iraque. O presidente sugeriu que esses três Estados representavam grave perigo não só porque procuravam desenvolver armas de destruição em massa, mas porque podiam compartilhar essas armas com terroristas. Ao dedicar mais palavras ao Iraque, Bush começou a montar o argumento que mais tarde ficaria familiar para os americanos: o Iraque era a mais séria ameaça a este país.

Mesmo assim, hoje nós sabemos que o Iraque não estava nem próximo de desenvolver armas de destruição em massa. A Coréia do Norte já as tem. O Iraque também não era o principal Estado patrocinador mundial do terrorismo. O Departamento de Estado americano apontou o Irã como a nação que melhor se encaixava nessa definição. Os Estados Unidos não tinham provas de que o Iraque, sob Saddam Hussein, havia compartilhado armas perigosas com terroristas ou tinham intenção de fazê-lo.Então,vale a pergunta: o que transformou Bagdá na capital mundial do mal?

Poderia se construir um argumento mais sólido contra o Iraque porque Saddam era um agressor de grandes proporções. Ao se impedir ações internacionais contra ele, se permitiria que seguisse nos ataques ao Irã e ao Kuwait, com agressões contra outros países (Arábia Saudita, em especial, ou talvez a Jordânia e Israel). Mas Bush não usou esse argumento no discurso sobre o Estado da União de 2002. Em vez disso, ele indicou que Saddam havia usado armas químicas contra seus próprios cidadãos (os curdos) no final dos anos 1980, expulsou inspetores internacionais e sabidamente planejou o desenvolvimento de armas de destruição em massa durante mais de uma década.

"Este é um regime que tem algo a esconder do mundo civilizado", disse Bush, sem perceber que Saddam na verdade escondia o fato de que não tinha mais armas de destruição em massa.

Se o governo tivesse argumentado que Saddam desenvolveria essas armas se pudesse ou que as sanções sobre o regime se tornaram menos eficientes, o argumento para a guerra poderia ter sido mais correto. Mas também teria sido menos convincente. Então, o presidente declarou o Iraque como o mal baseado nas intenções de Saddam, não em sua capacidade.

Os terroristas, claro, representavam uma verdadeira ameaça. Mas, ao invadir o Iraque, os Estados Unidos transformaram um exportador de mal em um importador, transformaram um Estado agressor em uma vítima terrorista e criaram um país que se tornou o centro mundial dos suicidas. O Iraque vai se tornar, sem dúvida, o que o Afeganistão era antes de 11 de setembro de 2001: o campo de batalha onde os atuais terroristas são treinados.

Como os objetivos centrais da Casa Branca de coibir a proliferação de armas e do terrorismo não foram bem sucedidos no Iraque, o governo e muitos de seus defensores mudaram o foco, argumentando que o objetivo primeiro da guerra era criar um novo movimento democrático no Oriente Médio. O governo merece crédito por promover a democracia na região, embora a palavra em si nunca tenha sido mencionada no discurso do "eixo do mal". Mesmo assim, a problemática invasão do Iraque mal avançou na causa. Embora o Iraque tenha feito eleições, e muitos xiitas e curdos apareceram para votar, os sunitas não abraçaram o novo governo - e a insurgência cresce. A descoberta no mês passado de uma operação de tortura de xiitas contra sunitas só aumenta a desconfiança. No meio tempo, seculares de todos os perfis não estão satisfeitos com a influência cada vez maior do que chamam desdenhosamente de "turbantes", o setor religioso da população.

Desde a invasão, outros governos árabes falaram em favor da democracia no Oriente Médio. Mas a maior parte dessas declarações, especialmente no Egito e na Arábia Saudita, levaram a nada mais do que conversas com o objetivo de atenuar as demandas dos americanos. Só no Líbano e na Palestina a democracia avançou substancialmente. Em ambos, as rupturas podem ser atribuídas mais às mortes de líderes sírios e palestinos do que à invasão do Iraque.

Ironicamente, o membro do "eixo do mal" Irã parece ser o maior beneficiário da invasão americana. Teerã não tem mais um arquiinimigo em sua fronteira e a guerra levou a recrudescer a atitude dos xiitas na região, especialmente no Iraque. É notório que existem profundas diferenças entre os xiitas nos dois países. Mesmo assim, o paradoxo do ataque americano e da ocupação mal administrada que causou - um furacão Katrina no Eufrates - aumentou a ameaça iraniana aos EUA, Israel e os moderados árabes da região.

A invasão para destruir os "maus" conseguiu destruir apenas um - Saddam Hussein. Mas impulsionou um mal mais complexo e variado - os terroristas. Aos americanos preocupados com as conseqüências da invasão sobrou só debater a eficiência dela em primeiro lugar.