Título: No caminho de Bush, há muitas dúvidas
Autor: David E. Sanger
Fonte: O Estado de São Paulo, 18/12/2005, Internacional, p. A16,17

Mais de mil dias transcorreram desde que o presidente americano George W. Bush ordenou a invasão do Iraque até ele descrever, com detalhes consideráveis, sua estratégia para transformar o país e a região, para assentar os fundamentos do que, como disse na quarta-feira, conduziria a uma "vitória completa." Entretanto, alguns de seus assessores admitem que ele defendeu sua causa justa em quatro discursos recentes e um documento sobre estratégia no momento em que sua capacidade de controlar os acontecimentos no Iraque pode estar periclitando.

Algumas autoridades americanas acreditam piamente que nos meses subseqüentes à eleição iraquiana da última quinta-feira o embaixador americano no Iraque, Zalmay Khalidad, continuará sendo a eminência parda decisiva na criação de uma coalizão de facções para governar o país.

Mas é o longo prazo - o próximo ano - que preocupa muitos consultores de Bush e militares americanos. Em meio a ataques de insurgentes e indícios de guerra civil, o governo poderá levar meses para se formar, e muitas autoridades se perguntam se essa demora não impedirá os iraquianos de transporem os obstáculos que Bush deseja antes que comece a retirar as forças americanas no próximo ano.

Tomados em conjunto, os discursos e o documento de Bush apenas ressaltam o quanto são altos esses obstáculos: construir um novo governo com força para evitar que "terroristas e saddamistas possam continuar ameaçando a democracia no Iraque," disse Bush; com força para garantir que os terroristas não possam usar o Iraque como base para tramar ataques contra os Estados Unidos; e contar com um contingente de segurança iraquiano capaz de proteger seu povo.

Nos discursos, Bush tem sido cautelosamente otimista. Ele reconheceu, porém, que quase nada no Iraque saiu conforme os planos nestes últimos 33 meses. Participantes de alguns briefings que ele concedeu nas últimas semanas dizem que esse reconhecimento condiz com o tom bem mais sombrio dessas reuniões. Comandantes militares descreveram situações possíveis que variam do melhor caso - reduzir as tropas americanas para cerca de 100.000 até as eleições americanas em novembro - a mantê-las em números bem maiores se o novo Parlamento ficar caótico, houver ameaça de guerra civil, ou líderes políticos forem assassinados. "Ou construímos uma rampa de saída", disse um veterano funcionário envolvido nas discussões da última semana, "ou construímos uma caixa."

O receio da administração é que o caos possa exaurir o que sobrou do apoio parlamentar e público que Bush tentou construir com seus discursos e a repetição da palavra "vitória". (Ele usou a palavra 10 vezes na quarta-feira num discurso de 31 minutos, mas depois do primeiro discurso, na Academia Naval dos Estados Unidos, há duas semanas, a Casa Branca decidiu colocar na geladeira o imenso pano de fundo do "Plano para a Vitória."

Os discursos foram um esforço para estancar o problema mais imediato que Bush enfrenta desde que voltou de uma viagem de oito dias pela Ásia no mês passado: uma erosão vertiginosa do apoio à guerra no país. Enquanto viajava pelo exterior, Bush foi várias vezes surpreendido pelos rumos do debate. Quando o deputado John P. Murtha declarou que "é hora de trazer os soldados para casa", a Casa Branca rebateu com força emitindo uma declaração de que Murtha, um democrata "falcão" e veterano, estava "endossando as posições políticas de Michael Moore e das alas liberais extremadas do Partido Democrata."

Logo ficou evidente, porém, que era preciso uma outra abordagem da questão. "Parecia que todo dia havia alguém entrando no quarto de hotel do presidente e dizendo que ele precisava responder a seus críticos de uma distância de 10.000 quilômetros", disse um assessor presente na viagem. "E isso não estava funcionando." Então, em seus discursos, que estavam sendo preparados desde o último verão (junho a setembro no Hemisfério Norte), Bush finalmente decidiu oferecer ao país uma avaliação mais realista da tarefa com que se depara. Ele admitiu que as forças militares americanas não conseguiram armar as forças de segurança iraquianas, o que permitiu que a insurgência se alastrasse. Reconheceu que o primeiro plano americano para criar um governo iraquiano avançou com extrema lentidão. Admitiu que o esforço americano de reconstrução foi mal conduzido, e que aproximadamente 30 mil iraquianos morreram em conseqüência da ação militar americana e da insurgência - uma cifra de baixas que nunca havia sido ventilada anteriormente. "O tom reconhecia que houve reveses, que houve dificuldades, e isto é difícil de fazer", disse Robert Blackwill, um dos principais consultores de Bush sobre o Iraque depois da invasão. Esse tom foi uma grande mudança.

Mas as preocupações persistem. Um funcionário de alto escalão da Casa Branca, insistindo no anonimato por não estar autorizado a falar sobre o Iraque, disse na semana passada que nas reuniões "falamos sobre a possibilidade de o novo governo iraquiano não ver nenhuma vantagem em colocar suas forças de segurança rapidamente nas ruas" se achar que o resultado será a saída do poder de fogo americano.

Algumas autoridades têm o receio oposto, de que o novo governo iraquiano pedirá aos americanos que saiam com demasiada rapidez. Todos concordam, porém, em que a capacidade americana de moldar o campo de batalha iraquiano se reduzirá gradualmente no próximo ano. Se ela se reduzir porque um novo governo iraquiano - ainda que faccioso, dividido - tomar forma, o presidente poderá declarar antes das eleições que a grande promessa de sua presidência foi cumprida, e que os soldados podem começar a voltar para casa.

No entanto, se ela se reduzir porque o país ficou fora de controle, porque grupos terroristas e insurgentes continuam agindo, porque realizar a eleição no Iraque foi mais fácil do que costurar acordos, então Bush poderá estar voltando a fazer no próximo ano o que fez nas últimas duas semanas: explicar o que saiu errado, e por que invadir o país se mostrou muito mais fácil do que reformá-lo.