Título: A melhor amiga do exportador
Autor: Joaquim V. Levy
Fonte: O Estado de São Paulo, 10/12/2005, Economia & Negócios, p. B2

Kuala Lumpur - Viajando pela Ásia, fica mais fácil entender a importância da poupança e do gasto público para o crescimento. Não escapa a ninguém, aqui, que a poupança está ligada à disposição de fazer escolhas e sacrifícios que favoreçam o emprego das futuras gerações, que irão sustentar as atuais. E que isso tem ajudado aqueles países a serem competitivos. Sabemos que a distribuição de renda no Brasil não é boa, e olhamos com estupor para o crescimento da Ásia, sonhando com melhoras do nosso padrão de vida. Esquecemos que, segundo dados publicados pelo Banco Mundial, a proporção da população vivendo com menos de US$ 1 por dia é menor no Brasil (8,2%) que na China (16,6%), na Índia (35,3%), ou mesmo no México (9,9%). No caso de US$ 2 por dia, a proporção no Brasil (22%) seria metade da chinesa, um quarto da indiana (80%), e um pouco inferior à do México (26%). A comparação com Indonésia (52%) e Tailândia (32%) vai na mesma direção.

Essa comparação não é motivo para complacência, mas indica que, muitas vezes, enquanto países lutam para crescer, eles têm de fazer escolhas difíceis. É nesse contexto que a recente Pnad tem maior expressão, ao mostrar que, comparando 2002 e 2004, a combinação de estabilidade de preços, crescimento econômico - ainda que moderado -, um aumento da formalização favorecido pela política de salário mínimo adotada em 2004, e políticas sociais mais voltadas para a base da escala de distribuição de renda permitiram uma importante melhora de vários indicadores sociais do Brasil, contemporânea a uma relativa estabilidade do gasto público.

Mas, quando discutimos nossas políticas, tendemos a esquecer que, na Índia, a Previdência Social pesa menos que 3% do PIB. Na China, dependendo da conta, chega até 5%. No Brasil, o conjunto das despesas públicas nessa área está bem acima de 10% do PIB, e o grosso desse gasto não se dirige às camadas mais pobres da população. Na Ásia é entendido que o fato de a família ainda ser muito responsável pelos idosos (e não o contrário) fortalece a poupança e as decisões com um senso intertemporal que, como indicado no recente livro de um arguto analista social e filosófico brasileiro, é o que em última análise favorece taxas de juros baixas e maior competitividade. Esse senso intertemporal se reflete não só em questões puramente fiscais, mas também no maior ou menor entusiasmo da sociedade e do legislador em estabelecer, já, um rol de exigências, em geral meritórias, que são arcadas pelo setor produtivo, com impacto na competitividade do país e no custo dos investimentos.

Mesmo no curto prazo, a política fiscal pode afetar a competitividade das exportações. Modelos keynesianos capturam bem o fenômeno. Nos cursos elementares de macroeconomia se ensina que uma diminuição do gasto do governo tende a depreciar a moeda, tornando o setor exportador mais competitivo. A explicação tem que ver com a demanda por consumo e setores de bens e serviços não comercializáveis, e seu efeito sobre a disponibilidade de insumos baratos para o setor exportador. Nesse sentido, a contenção dos gastos públicos correntes pode diminuir a pressão sobre a política monetária e ajudar a manter o impulso exportador. Não se pretende, é claro, erigir esses modelos em paradigmas de políticas de desenvolvimento, mas eles podem ser úteis para a administração conjuntural da economia.

Por outro lado, mesmo que se evite um entusiasmo excessivo de acreditar que a disciplina fiscal seja um remédio para tudo, pode-se ter convicção de que ela tem um efeito positivo de médio prazo na oferta agregada e, portanto, na competitividade do país. Especialmente nos países mais endividados, a disciplina fiscal diminui o risco de uma crise e, tranqüilizando investidores e outros agentes, os torna mais ousados. Além disso, quando a responsabilidade fiscal é baseada em menos gastos, e não apenas em maior tributação, ela indica que o retorno dos investimentos não será reduzido por novos impostos, estimulando o investidor.

Em vista dessas e de outras considerações, tem-se desenvolvido uma literatura dos efeitos não keynesianos da disciplina fiscal baseados na redução do gasto público corrente. Estudos discutindo esses mecanismos se encontram nas páginas de várias instituições econômicas respeitadas, inclusive do Banco Central Europeu, onde há resenhas muito acessíveis (e.g., Documento de Trabalho n. 519: Rzónca e Cizkowicz, Non-Keynesian Effects of Fiscal Contraction in New Member States, setembro de 2005), e do Banco de Espa¿a, país onde a consolidação fiscal continuou, mesmo depois da queda dos juros obtida com a entrada na União Monetária Européia.

Assim, complementando o bom entendimento da posição do Brasil entre os países de renda média, a contribuição do volume e composição do gasto público merece ser analisada dentro do conjunto de alternativas normalmente levantadas pelos segmentos interessados em garantir a competitividade das nossas exportações.