Título: Os buracos da Cide
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 05/01/2006, Notas e Informações, p. A3

Não foi por falta de recursos que a malha rodoviária federal se deteriorou a ponto de o presidente da República, que até há pouco parecia ignorar os imensos problemas e riscos enfrentados por quem utiliza as estradas administradas pela União, determinar a sua equipe a elaboração de um plano tapa-buracos de emergência. Dinheiro existe em quantidade apreciável pelo menos desde antes do início do governo Lula, mas ele não vem sendo utilizado - ou, pior, vem sendo mal utilizado. Se, desde seu início, o governo Lula estivesse preocupado com o mau estado da malha rodoviária nacional, em particular a que se encontra sob administração da União, os cidadãos não precisariam assistir, até com certo constrangimento, ao espetáculo de natureza político-eleitoral que foi o anúncio das obras de emergência. Para começar um ano eleitoral como este com obras que possam impressionar os eleitores, o governo montou às pressas um programa de recuperação de estradas e anunciou a liberação de R$ 440 milhões para serviços de emergência. O plano, que se estenderá por todo o País, prevê a restauração de pavimentos e de sinalização de rodovias federais, muitas das quais em condições precárias. É um programa que já vem muito tarde e, mesmo assim, é muito modesto quando comparado com as dimensões do problema.

Os contribuintes têm razões de sobra para irritar-se com espetáculos como esse. Se o governo tivesse utilizado com sensatez e responsabilidade os recursos disponíveis para a área de transporte rodoviário, tais espetáculos seriam dispensáveis.

Desde janeiro de 2002, os brasileiros recolhem aos cofres da União a Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico (Cide), que é cobrada na importação e venda de petróleo e seus derivados, gás natural e seus derivados e álcool etílico combustível. Conhecida como "imposto do combustível", essa contribuição foi criada pela Lei 10.336, de dezembro de 2001, com a finalidade de financiar programas de infra-estrutura de transportes e programas ambientais ligados à indústria de petróleo e gás.

Até novembro do ano passado, a Cide já tinha rendido para o governo cerca de R$ 30 bilhões (nos 11 primeiros meses de 2005, a arrecadação desse tributo alcançou R$ 7,02 bilhões, de acordo com a Secretaria da Receita Federal). Por lei, parte do total foi transferida para Estados e municípios. Se o que ficou sob responsabilidade do governo federal tivesse tido a aplicação definida pela lei que criou a Cide, com certeza a situação da malha rodoviária não seria tão ruim como é hoje, em média.

O que se constata, porém, quando se compara a evolução da arrecadação da Cide com os investimentos no sistema de transportes, é rigorosamente o contrário do que deveria ter ocorrido. Desde a criação do tributo, os investimentos em transportes, em vez de aumentar, vêm diminuindo.

Em valores reais - conforme estudo elaborado pela Federação das Indústrias do Rio de Janeiro -, enquanto as despesas totais com a função de transportes ficaram na média anual de R$ 6,8 bilhões entre 1995 e 2001, no período 2002-2004, quando a Cide foi cobrada, elas caíram para a média de R$ 5,8 bilhões.

A comparação é ainda mais desfavorável para o período seguinte à criação da Cide quando se consideram apenas os investimentos no setor de transportes: entre 1995 e 2001, os investimentos médios anuais alcançaram R$ 4,5 bilhões; no período de cobrança do novo tributo, foram reduzidos para R$ 2,2 bilhões, menos da metade do período anterior.

O que foi feito com o dinheiro? Boa parte foi congelada, por meio do contingenciamento, e ajudou a engordar o superávit primário do governo federal. É possível que outra parte tenha sido utilizada para cobrir gastos correntes. Como mostrou o jornal O Globo, no ano passado recursos da Cide foram usados para pagamentos de despesas que nada têm a ver com aquelas definidas em lei. Muitas despesas são de pequeno valor, mas essa forma de utilização da Cide não estava prevista na lei. O que sobrou para ser efetivamente aplicado em transportes foi uma parcela pequena, muito inferior às necessidades do setor, como mostram os buracos nas estradas federais.