Título: Lula ouve o que não quer
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 05/01/2006, Notas e Informações, p. A3

O presidente Lula pode não saber o que a palavra significa, mas, diante da corrupção que manchou o seu partido e o seu governo, recorre invariavelmente à escatologia - a doutrina religiosa sobre o desenlace do tempo terreno e a consumação da história humana. Segundo ele, de fato, seria como que necessário aguardar o Juízo Final para só então afirmar com segurança absoluta se existiu o esquema de suborno de políticos chamado mensalão e identificar também cabalmente, em caso positivo, os seus responsáveis. "Depois desse processo todo", declarou o presidente, numa das passagens mais memoráveis da sua entrevista ao Fantástico, "é que todos nós vamos poder dizer _é verdade ou não era verdade_." O que não o impediu de se considerar desde já credor das desculpas dos que o acusaram - injustamente, deixou implícito, mesmo porque nunca soube de nada. Nem Lula, porém, está imune à verdade que emana da sabedoria do povo, segundo a qual quem fala o que quer ouve o que não quer. Tendo dito o que disse para desmoralizar o relatório parcial da CPI dos Correios, que comprovou o valerioduto, nomeou mais de uma dezena de seus beneficiários e expôs a natureza fantasmagórica dos empréstimos bancários que teriam irrigado o caixa 2 do PT, o presidente recebeu em duas parcelas o devido troco do meticuloso relator da comissão, deputado Osmar Serraglio, do PMDB paranaense. Primeiro, o parlamentar - talvez uns dos poucos entre os seus pares a não desandar sob os holofotes da mídia - perguntou metaforicamente: "O que ele quer? Que apareça um documento dizendo que o mensalão existe, assinado por todos os envolvidos?"

Depois, aparentemente decidido a não deixar barato a estocada recebida, Serraglio aproveitou a primeira reunião do ano da CPI para descrever uma realidade que põe por terra a especiosa teoria de que só depois do processo todo a que aludiu Lula - a apresentação do relatório final da comissão - será possível falar em provas. Reportando-se à transmissão ao vivo das sessões do colegiado, em especial dos depoimentos e acareações, Serraglio ressaltou que a sociedade já dispõe de instrumentos para firmar convicções e se disse perplexo com o argumento da inexistência das tais provas. "Estamos presidindo aqui a um grande júri popular", comparou. "Quem está se convencendo das provas é a população." De todo modo, o gambito defensivo de Lula é apenas a ponta visível das preocupações de Serraglio e do presidente petista da CPI, senador Delcídio Amaral.

Pois, enquanto Lula desenrola os seus sofismas, companheiros e aliados seus no Congresso elaboram a receita de uma pizza diferente - um "relatório paralelo" destinado a confundir a opinião pública, negando legitimidade às provas que decerto serão reafirmadas no texto derradeiro do relator, colocado assim sob suspeita, mesmo que não se consiga bloquear a sua aprovação. A jogada se completaria com a absolvição do maior número possível dos 11 deputados ainda sob processo no Conselho de Ética por terem se abastecido no valerioduto. Faz sentido: cada político tecnicamente inocentado seria uma evidência a mais de que "se criou no imaginário popular uma visão muito maior (da lambança promovida pelo PT) do que de fato é", conforme a enormidade proferida pelo presidente da Petrobrás, companheiro José Sérgio Gabrielli, em entrevista recente à Folha de S.Paulo.

Daí o empenho da cúpula da CPI para apresentar em fevereiro um documento que não possa ser inquinado pelo governismo de ser o resultado do emprego de dois pesos e duas medidas: não só o esquema do mensalão será detalhado, com ênfase na relação cronológica entre saques e votações, sem esquecer os depósitos nas contas do marqueteiro de Lula, Duda Mendonça, no exterior, mas serão dados nomes aos bois que participaram ou tiraram proveito da decisão do PSDB mineiro de se valer dos bons ofícios do publicitário Marcos Valério para o financiamento ilegal da campanha de 1998 no Estado. Omissões nesse departamento, além de inaceitáveis para a população, impediriam os petistas mais judiciosos que integram a CPI de se opor ao golpe do relatório paralelo. "Temos que defender um relatório único", sustenta, por exemplo, o deputado José Eduardo Cardozo, do PT paulista. "Quanto mais o tempo passa, maior a possibilidade de confusão", adverte. Mas não é rigorosamente isso o que deseja o quase assumido candidato à reeleição Luiz Inácio Lula da Silva?