Título: Respeitem o orçamento
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Fonte: O Estado de São Paulo, 10/12/2005, Notas e Informações, p. A3

Mais uma vez o Brasil poderá começar um ano sem orçamento federal em vigor. Isso ocorreu muitas vezes nos últimos 15 anos. Desta vez a explicação é a crise política. A oposição prefere atrasar a votação da proposta orçamentária para forçar a convocação do Congresso em janeiro. Assim, as comissões de inquérito poderão trabalhar normalmente e a atenção do público não será desviada. O governo, em princípio, rejeita a convocação, mas com isso se arrisca a adiar seu programa de investimentos. Além do mais, será preciso pagar um bom dinheiro extra aos parlamentares, se o presidente os convocar para trabalhar no recesso. Isso seria malvisto pela maioria dos cidadãos. Há um nó complicado, portanto, e é preciso desatá-lo.

No meio desse jogo, é fácil esquecer um dado fundamental. O orçamento público é um instrumento de governo e não apenas deste ou daquele governo. A máquina oficial pode até funcionar parcialmente sem uma lei orçamentária, mas só poderá realizar os gastos obrigatórios e manter a prestação mínima de serviços indispensáveis. Isso é bem pouco, especialmente num país carente de infra-estrutura e necessitado, em grau extremo, de maior ação governamental em várias frentes.

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva tem um motivo a mais - além daqueles ditados pelo senso comum - para querer cuidar dos investimentos logo nos primeiros meses. Em ano de eleição, é preciso fazer deslanchar os projetos com rapidez, porque há limites legais para a contratação de despesas.

Há, portanto, um componente eleitoral na pressa do governo, mas isso não é justificativa legítima para a criação de empecilhos como a obstrução dos trabalhos parlamentares, anunciada pela oposição. Se os investimentos forem úteis ao País - esse é o critério razoável de julgamento -, será errado impedir ou atrasar sua realização. Se forem maus projetos, a oposição poderá denunciar a tentativa de esbanjamento de recursos públicos. Poderá, de fato, combater os projetos meramente eleitoreiros nos próximos dias, se houver um esforço para a aprovação do orçamento antes do fim do ano.

Neste ano, como em ocasiões semelhantes, não se pode atribuir o atraso na tramitação do orçamento à falta de tempo. Se algo faltou, foi um real interesse na discussão de um componente fundamental da vida pública, especialmente nas democracias ocidentais modernas. Governo e oposição falharam, mais uma vez. Deveriam ter sido capazes de isolar dois aspectos de seu trabalho. Não deveriam ter deixado o trabalho das comissões de inquérito interferir nas atividades essenciais ao funcionamento das instituições.

Crises políticas em democracias bem estabelecidas não impedem a discussão e a negociação de projetos orçamentários ou de outras matérias fundamentais para a vida normal da sociedade. A operação normal das finanças públicas é tão essencial à vida cotidiana quanto os serviços de água, saneamento, energia, ensino e assistência médica. Tudo isso é de uma obviedade constrangedora, mas é necessário lembrar as obviedades quando os homens públicos parecem esquecer suas obrigações mínimas.

Só há uma solução sensata para o imbróglio. O primeiro passo é tentar concluir a discussão do projeto e aprovar o orçamento antes do fim do ano. Se for preciso, prolongue-se a atividade normal dos parlamentares até o último dia de dezembro. Esse esforço é apenas uma obrigação elementar. Se não for suficiente, caberá ao Congresso a autoconvocação, sem remuneração extraordinária, para a aprovação da proposta de lei orçamentária nos primeiros dias do ano.

O funcionamento do Conselho de Ética e das Comissões de Inquérito pode ser politicamente importante, mas é uma questão de conveniência. O confronto entre oposição e governo em torno desse ponto é um fato normal da vida democrática. O anormal, numa democracia madura, é tratar o orçamento como questão secundária e subordinada, na sua tramitação, aos interesses político-eleitorais. Oposição e governo devem brigar pelo tamanho e pela destinação de recursos do orçamento. Deixar o País sem lei orçamentária, sem que exista para isso uma causa extraordinariamente importante, é o descumprimento de um dever.