Título: Vantagens da Venezuela no Mercosul
Autor: Gilberto Dupas
Fonte: O Estado de São Paulo, 10/12/2005, Espaço Aberto, p. A2

O presidente Chávez tem estilo messiânico e vocação populista. Mas percebe com clareza o momento histórico que vivem seu país e a América Latina. Seduzida pelo Consenso de Washington, que lhe prometia a redenção, a região amargou duas décadas perdidas, enquanto via piorar ainda mais o desemprego, a informalidade e a exclusão social. Seus Estados ficaram cada vez mais fragilizados, provocando grandes zonas de anomia onde o crime organizado e o narcotráfico deitam e rolam. Chávez é produto desse contexto. Munido do farto dinheiro do seu petróleo, resolveu distribuir parte dos lucros com programas sociais amplos e abrangentes, ainda que assistencialistas. Numa América Latina de muita miséria e poucas perspectivas, como criticá-lo? Ele conta com duas vantagens: uma oposição golpista de péssima qualidade, diretamente vinculada a elites poderosas; e uma política míope de Bush para a região, fixada nas drogas e no próprio Chávez. Aliás, a oposição acaba de cometer outro grave erro. Resolveu não participar das eleições do último domingo, apesar de os observadores internacionais não terem encontrado provas de parcialidade; com isso praticamente se excluiu da Assembléia Nacional e optou por resistir ao governo democraticamente eleito atacando pela mídia e em protestos de rua, caminho certo para a radicalização. Inteligente e intuitivo, falando a linguagem do povo oprimido - e tendo contado com a diplomacia brasileira, que ajudou a evitar uma tentativa de golpe -, Chávez eleva a sua retórica contra os EUA, cria dificuldades diplomáticas e vende a ilusão de uma revolução bolivariana no subcontinente. Mas não queima dinheiro e mantém vínculos importantes com a comunidade de negócios norte-americana. Carlos Romero, importante e equilibrado intelectual venezuelano, entrevistado pelo Estado há poucos dias, disse: "Posso não concordar com ele, mas como politólogo tenho de reconhecer que ele é (...) um grande líder." Romero vê a Venezuela com amplas sobras de caixa para atender às demandas de sua população. Não crê que ela tenda a seguir o caminho cubano, e sim um populismo à Perón ou Alvarado. Mas é obvio que se a comunidade internacional demonizar Chávez, e a região não o acolher, tudo pode acontecer. Basta lembrar Cuba pós-revolução, empurrada que foi para um regime ditatorial pela intolerância norte-americana.

Ainda que ao sabor da crise política interna e dos preços internacionais do petróleo, o PIB da Venezuela marcou forte recuperação de 18% em 2004, prevendo-se 7% para este ano. Suas exportações de petróleo atingiram US$ 27 bilhões, mais da metade para os EUA, país com o qual mantém relações comerciais intensas. Ela é membro da Opep, detendo uma das maiores reservas do planeta e mais de 4% da produção mundial de petróleo, o que a faz objetivo prioritário para aventureiros de todas as espécies - o Irã tem 5% e o Iraque, alvo da brutal guerra de conquista norte-americana, apenas 2%. Trata-se do quarto maior país da América Latina, apenas superado por México, Brasil e Argentina; e representa 35% da Comunidade Andina de Nações (CAN).

Por tudo isso, a entrada da Venezuela no Mercosul, desde que aceite suas regras, é importante. Há dois graves impasses no nosso bloco. Primeiro, como conciliar os díspares interesses de Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai, seus parceiros originais. A profunda tragédia da crise Argentina, que afundou a indústria e gerou ampla miséria, apenas começou a retroceder com a renegociação corajosa da dívida externa e dois anos de crescimento a 9%; ainda tem muito a caminhar, mas especialmente recuperando espaços perdidos para o Brasil. Há queixas quanto à invasão de nossos produtos no mercado argentino e de investidores brasileiros comprando empresas locais. A queda de Lavagna - com a substituição adicional de três ministros por outros tidos como mais à esquerda - parece indicar políticas econômicas e sociais mais agressivas e uma elevação da retórica; dois deles têm vínculos com a Venezuela, vindo a ministra da Defesa da embaixada argentina naquele país. Já Uruguai e Paraguai necessitam ser tratados como sócios pequenos, desejosos de programas de ajuda diferenciados dos parceiros grandes; foi o que fez a União Européia quando admitiu países como Portugal e Grécia.

Mas, para além de ultrapassar as tensões e contradições entre seus parceiros atuais, existe uma questão de fundo importante. Mesmo que avance, o Mercosul hoje é pequeno demais como bloco para se posicionar como ator de algum peso na lógica de poder. É preciso caminhar rápido para uma União Sul-Americana. Para tanto se faz necessária uma aproximação de Chávez com Lula e Kirchner, rompendo com a CAN e aderindo ao Mercosul. Isso permitirá que continuemos sonhando com o alargamento do bloco, vital para lhe dar massa crítica compatível com o jogo global.

A Colômbia entregou-se aos EUA na guerra ao tráfico e a frágil Bolívia continua em crise, com o líder dos cocaleros, Ivo Morales, disputando a Presidência. Assim, uma fratura na CAN é vital para nossas pretensões de alargamento. Além de ser um país amazônico, a Venezuela cai como uma luva na consolidação de uma vigorosa matriz energética na América do Sul, complementada com gás boliviano e recursos hídricos mais álcool brasileiros; ela enquadra-se, assim, em dois eixos centrais da integração. Também para os EUA é uma boa solução, pois a única maneira de conter positivamente Chávez - e não abatê-lo de forma antidemocrática - é absorvê-lo numa comunidade mais ampla na qual sua retórica terá de se adaptar à convivência com seus pares. São razões mais que suficientes para acolhermos a Venezuela, incluindo seu complicado presidente.