Título: Kirchner se livra do FMI
Autor: Celso Ming
Fonte: O Estado de São Paulo, 17/12/2005, Economia & Negócios, p. B2

Desta vez, os argentinos não podem dizer que os brasileiros estão macaqueando os outros. Se alguém imitou alguém foi o presidente Kirchner, que anunciou a quitação do débito argentino com o Fundo Monetário Internacional três dias depois que o ministro da Fazenda brasileiro, Antonio Palocci, anunciou a antecipação para este dezembro do pagamento da dívida brasileira.

A operação do governo argentino resgata US$ 9,8 bilhões. US$ 8,8 bilhões saem das reservas e outro US$ 1 bilhão foi obtido por empréstimo do governo da Venezuela. O pagamento brasileiro alcançou US$ 15,5 bilhões que só venceriam em 2006 e 2007 e saiu das reservas livres.

Uma vez resgatadas essas dívidas, os dois governos não têm mais que dar satisfação de suas políticas ao Fundo. Mas são operações de significado diametralmente oposto.

O FMI é emprestador de última instância. Socorre o país sócio quando este corre sério risco de não ter com que pagar seus compromissos externos.

Toda quebra é quase sempre um problema fiscal porque qualquer dívida (e não apenas a impossibilitada de ser honrada) não passa de déficit acumulado ao longo dos anos.

Déficit acontece quando o governo gasta mais do que arrecada. Assim, se o problema é fiscal, o remédio também tem de ser. Consiste em exigir maior disciplina no uso dos recursos públicos e em formar um superávit primário, que é uma parcela da arrecadação destinada a resgatar a dívida de modo a que ela fique sob controle. Como disciplina orçamentária e formação de superávit primário cortam na carne, a terapia do FMI é quase sempre dolorosa.

No caso brasileiro, o governo Lula não só acatou a terapia exigida, mas foi além. Reforçou-a com um aumento do superávit primário. O governo Kirchner está em permanente litígio com o Fundo porque entende que essas exigências asfixiam a economia argentina.

Lula e Kirchner festejaram a liberação das amarras por motivações diferentes. Para Lula, trata-se apenas de tirar algum proveito eleitoral, já que o FMI tem sido demonizado pelas esquerdas. Até onde se sabe, não interessa ao governo Lula relaxar a disciplina fiscal.

O objetivo de Kirchner é livrar-se do cão de guarda para pintar e bordar na política econômica. Há duas semanas, mostrou o que pretende quando demitiu o ministro da Economia anterior, Roberto Lavagna, e nomeou para o cargo a economista Felisa Miceli, que foi logo avisando que estava lá para obedecer ao chefe.

O problema imediato de Kirchner chama-se inflação, que vai para 12% ao ano e ameaça saltar daí para o que for. Essa inflação foi semeada logo depois da posse, em 2003, quando Kirchner comprou apoio popular com generosos reajustes de salário e de aposentadoria.

Como não há investimento porque os empresários não confiam, chegou a situação em que a demanda segue crescendo sem resposta à altura da produção. Nessas condições, o ajuste se dá por meio do aumento dos preços. Foi para evitar a escalada que o governo argentino decretou o congelamento de preços nos supermercados, providência que tende a provocar desabastecimento, burla das tabelas e adiamento dos investimentos que ainda vinham sendo programados.

Na Argentina, a tutela do FMI funcionaria como bloqueio a eventuais decisões malucas em política econômica. Agora o governo está livre para fazer as bobagens. O principal risco no resgate da dívida argentina é o de que o uso das reservas acabe desfalcando demais o Tesouro. Se houver uma corrida ao dólar, o banco central argentino pode ficar sem bala para enfrentar a demanda e, nessas condições, a cotação do dólar pode disparar e despejar gasolina na fogueira.

Porque teme a adoção de uma política econômica de cunho populista, o mercado fugiu ontem dos títulos de dívida da Argentina. O índice de risco país subiu 19 pontos para 509 pontos. E o dólar saltou 0,97% para 3,045 pesos.

Ninguém sabe exatamente até aonde vai isso. Mas qualquer principiante em Economia sabe que essas coisas não acabam bem.