Título: 'Minha coca é legal, senhor'
Autor: Roberto Lameirinhas
Fonte: O Estado de São Paulo, 17/12/2005, Internacional, p. A20

Para agricultores como d. María, o plantio de coca é muito mais do que um costume histórico: é altamente lucrativo

Dezenas de cruzes espalhadas pela beira do abismo andino homenageiam a memória das vítimas do caminho da coca. A precária estrada é o último e mais perigoso trecho da viagem de cerca de cem quilômetros de La Paz até Yungas, um dos dois centros de cultivo legal de folha de coca da Bolívia. O outro é a região do Chapare, perto de Cochabamba. Um acidente com um caminhão, que tombou sobre um barranco estende a viagem para mais de cinco horas. Se tivesse tombado do outro lado, seria lançado num precipício de 300 metros. Nas encostas vistas da estrada, os campos de folha de coca são pequenos, numerosos e fáceis de identificar, pois é a única variedade de plantação cultivada em terraças nesta parte do amplo território boliviano, que tem um tamanho um pouco menor do que o do Estado do Pará.

A chamada "estrada da morte" está para ser aposentada. Uma rodovia moderna, pavimentada, que vem sendo construída há mais de cinco anos, está para ser entregue. O investimento, de mais de US$ 150 milhões, financiados a fundo perdido por organismos financeiros internacionais - incluindo governos estrangeiros e o Banco Mundial -, é mais uma tentativa de impulsionar a economia da remota região de Yungas e dar a seus mais de 20 mil moradores uma alternativa de trabalho fora dos campos de coca.

Muitos camponeses, tanto do Chapare como de Yungas, tinham aderido ao programa de substituição dos cultivos de coca financiado pelo governo dos Estados Unidos desde a década de 90, mas, afinal, acabaram voltando para a planta que contém o princípio ativo da cocaína.

Indígena aimará, María del Sol (na foto acima) é um desses pequenos agricultores de Yungas. Sua propriedade tem pouco mais de 1.000 metros quadrados. Ela recebe a reportagem do Estado ao mesmo tempo em que cuida da plantação de coca. María fala baixo, mora num casebre de barro com três filhos. O terreno ao lado, também cultivado com plantas de coca, pertence ao cunhado, irmão do marido que morreu há quatro anos. Ao fim de cada frase, d. María repete invariavelmente a palavra "senhor".

"Em 2000, aderimos ao plano de substituição de cultivos e plantamos café. Depois de um ano, a colheita da minha área foi vendida por 2.000 bolivianos (cerca de US$ 250), diz. Ela afirma ter recebido o equivalente a outros US$ 150 como indenização do programa, insuficientes para cobrir os custos da cultura cafeeira. "A folha de coca nos dá quatro colheitas por ano. Em cada colheita, consigo produzir 100 libras (cerca de 45 kg), que são vendidas por 1.600 bolivianos (cerca de US$ 200)", explica. A coca é colhida folha por folha e a colheita é espalhada em uma laje de concreto para secar ao sol.

Toda a produção legal de coca da região de Yungas tem de ser vendida no Mercado de Coca de La Paz, na periferia da cidade. As folhas são usadas pelos indígenas para mascar, em chás e na fabricação de medicamentos, pomadas anestésicas e pasta de dente.

A cotação é de aproximadamente US$ 100 para cada saco de 50 libras. Mas é no mercado ilícito que esse preço se quadruplica e pode se tornar uma grande tentação para os agricultores. "Minha coca é vendida apenas para o mercado legal. O que eles fazem com ela depois que ela chega lá, eu não sei, senhor", diz d. María.

Legalmente, os agricultores das regiões de Yungas e do Chapare estão autorizados a colher a produção de 12 mil hectares. A cada três meses, eles colhem uma safra. Segundo um estudo da Nações Unidas, essa quantidade é suficiente para abastecer o que é conhecido como o mercado legal.

A predileção dos camponeses indígenas bolivianos pelo cultivo da planta vai além das raízes históricas e rituais. Para as quatro colheitas anuais, a coca requer pouco cuidado e resiste bem às pragas agrícolas e ao clima úmido da região, entre as montanhas dos Andes e a porta de entrada da Amazônia. Ante essas vantagens, nenhum produtor parece preocupado com os graves efeitos sociais do tráfico e do vício da cocaína em outros países do mundo.

No Chapare, parte dos campos de plantas de coca tinha sido substituída pelo cultivo de abacaxi e maracujá, que eram exportados para a Argentina. Mas, na safra seguinte, sem assistência técnica oficial para garantir a qualidade da colheita, as frutas diminuíram de tamanho e os argentinos cancelaram os pedidos. Com isso, todo um contingente de novos exportadores voltou para a cultura da coca.

Em Yungas, as autoridades bolivianas, sob a supervisão da Nações Unidas, fiscalizam as plantações para tentar evitar que a área de cultivo supere o limite legal. Mas estão mais empenhadas em combater a produção da droga no local. Nas barreiras policiais, a principal preocupação é com o contrabando de produtos químicos para o refino de cocaína.

A relação entre os policiais e os moradores da região nem sempre é amistosa. Durante os protestos de 2003, que resultaram na queda do presidente Gonzalo Sánchez de Lozada, manifestantes tentaram incendiar o quartel policial de La Rinconada, cuja principal tarefa é a de controlar as plantações de coca.

Para José Manuel Martínez, representante da agência da ONU de combate às drogas em La Paz, casos como o de d. María del Sol, de Yungas - que inicialmente aderiu ao plano de substituição de cultivos, mas depois voltou a plantar coca -, só se reduzirão drasticamente com o investimento maciço na educação e na formação de uma consciência de cidadania e legalidade entre os indígenas mais pobres da Bolívia.

"Se formos levar em conta o valor da coca para o mercado do narcotráfico, nunca teremos produtos competitivos. Aí entra o trabalho de convencer o produtor de que a produção lícita - apesar de ser quatro ou cinco vezes menos lucrativa do que a ilícita - faz dele um cidadão, enquanto o contrário faz dele um criminoso ", diz José Manuel Martínez.

Para as Nações Unidas, o esforço para reduzir os campos de coca deve ser encarado como um programa de longo prazo. Os investimentos estão melhorando as estradas, construindo pontes e túneis para melhorar a economia das regiões mais pobres e isoladas. Isso fica claro na nova estrada que liga La Paz à região de Yungas. Com isso, diz a ONU, seus habitantes poderão explorar seu potencial turístico, por exemplo, e livrar-se da dependência econômica da coca.