Título: O vexame do 'valerioindulto'
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Fonte: O Estado de São Paulo, 17/12/2005, Notas e Informações, p. A2

O ano legislativo de 2005, que começou na Câmara com a eleição do deputado Severino Cavalcanti para a sua presidência, acaba de dar razão pela enésima vez a todos quantos dizem que não há limites para a desfaçatez dos políticos e o seu desdém pela opinião pública. Ao preservar o mandato do petebista mineiro Romeu Queiroz, que confessara o recebimento de recursos ilícitos, na mesma quarta-feira em que o Congresso despachou para o contribuinte uma fatura da ordem de R$ 100 milhões pela sua autoconvocação extraordinária, a Câmara manteve o nível de obscenidade política da sagração do rei do baixo clero. Severino afinal precisou renunciar para fugir ao risco de perder a cadeira e ter suspensos os seus direitos políticos. Deve estar arrependido. O Conselho de Ética havia pedido a punição de Romeu Queiroz por ter ele recebido R$ 350 mil do valerioduto e R$ 102 mil da Usiminas, também "não contabilizados". O deputado se disse inocente, alegando que não feriu o decoro parlamentar uma vez que não embolsou nenhum centavo - tudo, argumentou, foi repassado ao PTB e a políticos do seu Estado para cobrir custos de campanha. Sábio homem: se o PT corrompia não para enriquecer os companheiros, mas para ajudar o seu governo a melhorar o Brasil, por que deveria ele ser castigado se tampouco usufruiu egoisticamente da dinheirama? E o próprio presidente Lula não chegou a dizer, em defesa do PT, que o uso do caixa 2 é generalizado na política brasileira?

A absolvição de Queiroz - o "valerioindulto", como o deputado Chico Alencar, do PSOL, batizou o vexame - foi aprovada pelo voto secreto de quase 60% de 443 deputados. Nunca antes o plenário rejeitara um pedido de cassação vindo do Conselho de Ética. O ato não representou um acidente de percurso. O inocentado se beneficiou da confluência de três fatores pelos quais o Legislativo, ou boa parte dos seus membros, se orienta costumeiramente: o interesse, o regionalismo e o relacionamento pessoal. A vitória de Queiroz convinha a Lula - que vive dizendo que o mensalão nunca ficou provado, não vê a hora de acabarem as denúncias e as apurações e só tem a ganhar quando os políticos são vistos como os pizzaiolos.

O resultado convinha também, vai sem dizer, aos 11 deputados (entre os quais 5 petistas) que respondem a processo no Conselho de Ética. Um deles, o Professor Luizinho, trabalhou por Queiroz "com espalhafato", segundo um observador. Está claro que, salvo se a sociedade bombardear a Câmara com a indignação que já se dissemina na internet, as chances de sobrevida deles todos serão cada vez maiores. De fato, absolvendo Queiroz, a Câmara produziu uma espécie de súmula vinculante - a jurisprudência de que caixa 2 não é motivo para tirar o mandato de ninguém. Um mal disfarçado "acordão" foi crucial para poupar o caixeiro que, depois do triunfo, alardeava ter recebido mais de 50 votos do PT.

A parte que tocou ao regionalismo nessa baixaria ficou caracterizada pela atuação intensa em seu favor dos ministros mineiros Walfrido Mares Guia, do Turismo, e Saraiva Felipe, da Saúde. Também o governador tucano Aécio Neves se empenhou junto à bancada mineira de 53 membros. Apenas um punhado deles teria votado contra o acusado - que se beneficiou, enfim, da peculiaridade de ser amplamente benquisto por seus pares. No Congresso, quem tem muitos amigos tem meio caminho andado. Tivesse o deputado José Dirceu, por exemplo, o bom trânsito sempre citado pelos políticos como um atributo de primeira ordem, o desfecho da votação no seu caso poderia ter sido outro.

Aliás, não dizia o petista que queriam cassá-lo por ser quem era? Pois isso ajudou Queiroz a escapar de igual destino. "Houve pressões das mais diversas, o Romeu Queiroz é uma figura simpática e soube fazer direitinho o processo po

lítico eleitoral", resumiu o presidente do enfraquecido Conselho de Ética, deputado Ricardo Izar. Para ele, o precedente poderá ajudar em especial os petistas Luizinho e João Paulo Cunha, e o pefelista Roberto Brant. (O outro deputado absolvido, Sandro Mabel, já o tinha sido no Conselho.)

Os três citados têm em comum com Queiroz o fato de que não se abasteceram em pessoa no valerioduto: os saques foram feitos por assessores. Na impudente lógica parlamentar, é um indício de que o dinheiro não era para eles se locupletarem - como se isso os isentasse de culpa. Ou a Câmara, da ignomínia cometida.