Título: Os eufemismos dos candidatos
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 17/12/2005, Notas e Informações, p. A3

Não se pode negar à ex-prefeita Marta Suplicy, nem ao senador Aloizio Mercadante, o pleno direito de continuarem suas carreiras políticas, permanecendo fiéis ao PT - cuja força política, atrelada à imagem carismática de Luiz Inácio Lula da Silva, foi decisiva para suas respectivas vitórias eleitorais: a dela em 2000, quando conquistou a Prefeitura mais importante do País, e a dele em 2002, quando se tornou o senador mais votado da história do Brasil. Ambos, agora, se dispõem a disputar a legenda de seu partido para candidatar-se ao governo deste Estado. Por coincidência, cada um deu sua entrevista inicial de pré-candidato no domingo passado, ela neste jornal e ele na Folha de S.Paulo. Mostraram suas diferentes idéias, suas experiências - a administrativa de uma, a parlamentar do outro -, mas em um ponto se demonstraram totalmente assemelhados, quase idênticos: nos eufemismos com que se referiram à crise petista.

Reconheceu Marta que o PT saiu "chamuscado" da "confusão". É com esta palavra, "confusão", que ela define o rol de crimes perpetrados por seus colegas dirigentes partidários, pelos dirigentes de partidos aliados e pelos parlamentares federais que se deixaram, digamos, "convencer" nas votações de interesse do Planalto, apoiando o governo, em troca de favores argentários - para não usar a tão feia palavra "mensalão". Por sua vez, Mercadante chama de simples "erros" do partido toda a corrupção sistêmica que vai sendo descoberta pelas CPIs, a Polícia Federal e o Ministério Público. E nessa exacerbação de linguagem eufemística chega a inventar verdadeiras pérolas, primeiro, ao proclamar que "nunca imaginou que essa terceirização das finanças do partido pudesse ter ocorrido" (grifo nosso), e depois, ao criar o conceito de erro ético: "Eu mesmo não esperava que pudéssemos errar na questão da ética." Pena uma original conceituação desse tipo ter escapado à reflexão de pensadores como Aristóteles e Espinoza. Mas, na história do pensamento, sempre haverá tempo para associações filosoficamente estapafúrdias...

Seria apropriado chamar-se de "erros" a corrupção ativa e passiva, a prevaricação, a falsidade ideológica, o suborno, a extorsão, a apropriação indébita, o tráfico de influência, a sonegação fiscal, a formação de quadrilha e tantos outros delitos capitulados na legislação, claramente, como crimes? O senador também mitiga a gravidade da questão sob outro aspecto, quando diz: "A raiz dessa crise é financiamento de campanha. Se não fizermos uma reforma política corajosa, crises como essa vão se repetir." Isso é a verdade, mas não a esgota. Sem dúvida falta "uma reforma política corajosa" no País - e não estamos certos se o senador mais votado do País e líder do partido que está no Poder se esforçou suficientemente para que essa reforma se fizesse. Mas será que as regras eleitorais em vigor e a atuação da Justiça Eleitoral são, assim, tão desastradas, tão ruinosas à democracia, a ponto de ensejarem uma vasta organização criminosa para a viabilização do processo eleitoral? E será que o "erro" de caixa 2 é tão indispensável para que a população possa escolher seus representantes e governantes?

A certa altura de sua entrevista Marta Suplicy atribuiu tudo ao "erro" (de novo!) de "uma ou duas pessoas", afiançando: "Temos dois ex-dirigentes que claramente assumiram seus erros. Vamos aguardar o fim das investigações para ver se há mais responsáveis." E ela acha que o maior problema do PT foi "ter deixado tudo na mão de uma pessoa" (ou duas, vá lá!). Será uma tentativa de "terceirizar" a corrupção petista?

Em sã consciência, não dá para acreditar na sinceridade de propósitos dos que pretendem "reconstruir" ou "reerguer a alma do PT", seus "princípios éticos" - propósitos esses que parecem comuns aos dois candidatos petistas -, avaliando assim, de forma tão simplificada, a verdadeira devastação moral que atingiu um partido nascido para ser o campeão intransigente da "ética na política". Esses pré-candidatos e as demais lideranças petistas sobreviventes precisam entender, antes de mais nada, que com eufemismos não se reconstrói nada.