Título: O guerreiro que adotou a paz
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 06/01/2006, Internacional, p. A10

A violenta hemorragia cerebral que fulminou Ariel Sharon aflige, em Israel, na Palestina e no mundo inteiro, todos que esperavam ver surgir um pouco de luz depois de tantos anos de trevas sobre o Oriente Médio. Sharon, após ter imposto a saída dos colonos da Faixa de Gaza, carregava sobre os ombros robustos e o corpanzil barrigudo a esperança da paz. Estranha inversão. Há apenas cinco anos, Sharon não era o ícone da paz, mas da guerra. Quando, em fevereiro de 2001, após assegurar uma vitória eleitoral esmagadora do Likud (o partido de direita), ele foi nomeado primeiro-ministro, os países árabes e os palestinos acharam que dificilmente poderia haver um interlocutor pior em Israel. Nada em seu passado faria supor a recente metamorfose de Sharon, uma dessas reviravoltas históricas que só os grandes estadistas têm a capacidade de conceber e, depois, realizar. Até então, até sua recente decisão de retirar da Faixa de Gaza os colonos israelenses, ele se revestira continuamente dos trajes de "falcão" e, entre os falcões, de um dos mais implacáveis, dos mais cruéis.

Seu gênio guerreiro se manifestou cedo. Descendente de uma linhagem de bielo-russos, Sharon (cujo nome de origem é Sheinerman) nasceu em 1928 perto de Tel-Aviv. Ainda jovem, com 17 anos, engajou-se na Haganá, o exército clandestino dos judeus, e contava 20 anos quando estourou a guerra de 1948 em que participou com brilho. Fundou um corpo de elite cuja especialidade foi profética: as operações de represália contra os fedayin (guerrilheiros) árabes que atuavam a partir da Faixa de Gaza. Um soldado, portanto, desde muito jovem. Como ministro da Defesa de Begin, foi ele quem orquestrou a invasão israelense do Líbano em junho de 1982. E no pavoroso massacre perpetrado por falangistas cristãos libaneses em setembro daquele ano, nos campos de refugiados palestinos de Sabra e Chatila, Sharon foi considerado "responsável indireto". Em 2000, ele visitou a mesquita de Al-Aqsa, considerada um de seus lugares sagrados pelos árabes. E foi um incêndio. Começou aí a segunda intifada (revolta palestina). O Likud saiu revigorado do embate e conquistou 63% dos votos nas eleições seguintes. E Sharon tornou-se primeiro-ministro em 2001.

Uma parte do gênio político de Sharon se deve, além de sua sutiliza, a sua arte de fazer vibrar os símbolos. Ainda hoje ele possui uma casa em Jerusalém Oriental, em pleno bairro muçulmano com uma gigantesca bandeira israelense tremulando no telhado. Sharon nunca habita essa casa, porém. Ele mora num rancho na zona rural, onde cria o melhor gado de Israel.

Em seus discursos, ele é hábil para atiçar os ânimos. Jamais se referiu aos palestinos como algo mais que "nativos". Mas, de repente, o inesperado: em abril de 2004, o guerreiro foi na contramão de tudo que fez e ordenou a saída de israelenses da Faixa de Gaza e de parte da Cisjordânia. Este é o homem que hoje luta contra a morte. E depois dele? Os dois povos trilharão o caminho para a paz?