Título: A corrida aos pobres
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 17/12/2005, Notas e Informações, p. A3

Madre Teresa ficaria entusiasmada. Todos os negociadores de peso resolveram declarar seu amor aos pobres na 6ª Conferência Ministerial da OMC, em Hong Kong. União Européia, Estados Unidos e até países em desenvolvimento relativamente avançados, como o Brasil e os parceiros do G-20, decidiram cortejar os menos desenvolvidos e apresentar-se como seus benfeitores e defensores na selva dos mercados internacionais. Com isso os pobres poderão lucrar alguma coisa - no mínimo, acesso a alguns grandes mercados e assistência técnica e financeira para progredir como comerciantes. Examinando o assunto com maior atenção, no entanto, Madre Teresa poderia decepcionar-se. Perceberia, por exemplo, que ninguém está cortejando os pobres apenas por espírito humanitário. Bons sentimentos podem ter alguma importância, mas a história é um pouco mais complicada. A solicitude com os países de menor desenvolvimento custa pouco e pode ser estrategicamente valiosa na Rodada Doha de negociações comerciais.

O propósito da União Européia é o mais evidente. Seu interesse pelos menos desenvolvidos fortalece moralmente, pelo menos em aparência, a oposição às pretensões do Brasil e de outros emergentes em relação ao comércio agrícola. Os interesses dos grandes exportadores agrícolas não são os mesmos das economias mais pobres, segundo o comissário de Comércio, Peter Mandelson.

Isso vale especialmente, é claro, para os países ACP (África, Caribe e Pacífico), ainda presos por vínculos de comércio semicoloniais à velha mãe Europa. Se a União Européia tiver de reformar sua política agrícola mais amplamente, aqueles países pobres perderão as preferências comerciais concedidas pelas antigas metrópoles. Portanto, as pretensões dos produtores agrícolas maiores e mais competitivos podem ser perigosas para as economias de menor desenvolvimento. Esse argumento é falso, segundo o Banco Mundial, mas os negociadores europeus não parecem dar importância a esse detalhe.

Os negociadores americanos apóiam os brasileiros na cobrança de alterações muito mais amplas na política agrícola européia. Mas também fazem corte aos pobres. Nos primeiros dois dias da conferência de Hong Kong, europeus e americanos disputaram encarniçadamente o título de maiores amigos dos pobres. Os dois lados anunciaram a concessão de mais dinheiro para capacitação comercial das economias pobres. Disputaram igualmente o troféu de importadores mais amigos dos países de menor desenvolvimento.

O Brasil e seus parceiros do Mercosul e do G-20 não poderiam ficar fora do jogo. Conseguiram reunir, na terça à noite, representantes de outros grupos de países em desenvolvimento, na maior parte pobres e pouco avançados tecnologicamente. Discutiram interesses comuns e possibilidades de cooperação na conferência de Hong Kong e no restante da rodada. Os ministros do Mercosul aproveitaram para reafirmar a disposição de abrir mercados, sem tarifas e sem cotas, para a importação de produtos de outras economias em desenvolvimento. A oferta, naturalmente, não valerá para todos os tipos de produtos.

Há espaço na pauta brasileira de importações para produtos dos países pobres. No caso dos EUA, esse espaço é imenso. A abertura dos maiores mercados para essas economias poderia ter ocorrido há muito mais tempo. A solicitude especial, neste momento, é acima de tudo um lance de uma dura disputa diplomática. Esse quadro tem alguns aspectos positivos. Na OMC, o voto de cada um dos 149 associados tem o mesmo peso. Desde a fracassada reunião de Seattle, em 1999, os governos das pequenas economias vêm mostrando que podem usar esse voto com eficiência. Para o Brasil, a novidade positiva é outra. Sem ser plenamente desenvolvido, o País é considerado, no entanto, um interlocutor relevante e com poder de mobilização de votos. Mas isso significa, também, pressões para que o Brasil assuma responsabilidades maiores. Esse é o lado ruim. A posição brasileira, de país nem plenamente desenvolvido nem atrasado, pode ser muito desconfortável em certos momentos. Por que não assumir, de uma vez, sem comodismo e medo, as tarefas necessárias para subir de uma vez o degrau do pleno desenvolvimento?