Título: 'Os EUA não querem o fracasso de Morales'
Autor: Paulo Sotero
Fonte: O Estado de São Paulo, 06/01/2006, Nacional, p. A13

Às vesperas de iniciar sua primeira visita desde que assumiu o mais alto posto da diplomacia dos EUA para a América Latina, o embaixador Thomas Shannon, um diplomata de carreira de 47 anos que já serviu em Brasília, explicou o silêncio que Washington manteve até agora diante dos insultos proferidos pelo presidente eleito da Bolívia, Evo Morales, contra o presidente George W. Bush. Shannon, que deverá chefiar a delegação americana à posse do líder boliviano, chega ao Brasil na terça-feira para uma visita de dois dias que terá a Bolívia no topo da agenda dos temas bilaterais e regionais. O alto funcionário visitará também a Argentina. Abaixo, os principais trechos da primeira entrevista que concedeu desde que assumiu o novo cargo, depois de trabalhar mais de quatro anos como assessor senior do Conselho de Segurança da Casa Branca para as Américas. Em uma de suas primeiras declarações públicas depois de eleito na Bolívia, Evo Morales chamou o presidente Bush de terrorista. Em lugar de reagir, o governo americano instruiu seu embaixador a manifestar pessoalmente a ele seu desejo de cooperação. Por que?

A Bolívia é um importante parceiro dos EUA na região há décadas. Temos um grande programa de assistência e somos o maior doador de fundos para o país. Trabalhamos muito para identificar e obter os recursos técnicos e financeiros necessários para lidar com questões relacionadas com o desenvolvimento econômico da Bolíva e o combate aos narcóticos. Trabalhamos duro também junto à comunidade internacional, ao Fundo Monetário Interncional, ao Banco Mundial para avançar no alívio da dívida da Bolívia e criar um ambiente no qual o país possa ter acesso (aos benefícios) da Conta do Desafio do Milênio (novo programa de assistência dos EUA). Nosso compromisso com a Bolívia é conhecido.

Um ex-embaixador da administração Bush em La Paz, Manuel Rocha, disse certa vez que se Morales fosse eleito Washington cortaria a ajuda ao país. A vitória de Morales preocupa os EUA?

Nosso compromisso com a democracia na Bolívia é igualmente conhecido. Depois do colapso do governo de Gonzalo Sánchez de Lozada, os EUA, trabalhando em conjunto com Brasil, outros parceiros na região e a Organização dos Estados Americanos (OEA), garantiram que o país fizesse sua transição num contexto constitucional. A questão que a Bolívia enfrenta agora é determinar que tipo de relação o novo governo quer ter com os EUA e outros países na região.

Morales escolheu a Cuba de Fidel Castro e a Venezuela de Hugo Chávez, dois inimigos jurados dos EUA, para iniciar suas visitas como presidente eleito.

Ele está visitando países com os quais a Bolívia tem laços diplomáticos e com os quais ele, obviamente, pretende ter relações. O que queremos é ter uma conversa ampla com ele sobre todos os aspectos de nossa relação bilateral.

Os interesses econômicos e políticos do Brasil na Bolívia superam os dos EUA. Como o sr. vê o diálogo entre os governos Bush e Lula em relação à Bolívia?

Do nosso ponto de vista, o Brasil é um parceiro muito importante nas Américas e na América do Sul. Acreditamos que os interesses do Brasil na Bolívia coincidem largamente com os nossos. Eles são: governo constitucional e democrático, desenvolvimento econômico e tratar da questão do narcotráfico.

Alguns analistas têm explicado o silêncio de Washington frente às declarações hostis de Morales dizendo que o fracasso do líder boliviano não corresponde aos interesses dos EUA...

Acho que isso é verdade. Agora, o sucesso de Morales será definido em termos do aprofundamento da democracia, do aumento do desenvolvimento econômico e de dar ao povo boliviano condições para desfrutar desse desenvolvimento. E da manutenção da aplicação da lei com um parceiro tradicional (os EUA), para assegurar que a produção legal de coca não abra o caminho para a produção de cocaína. É assim que definimos sucesso na Bolívia.

Mas o programa de erradicação da coca na Bolívia é visto como um fracasso. Ironicamente, o fenômeno Morales é um resultado da rejeição desse programa. E o presidente eleito disse que não levará adiante o programa, que é prioritário para os EUA em sua relação com a Bolívia.

O esforço para combater a produção de cocaína na Bolívia não é um projeto dos EUA. É um programa boliviano, que os EUA e outros países apóiam. Do nosso ponto de vista, é uma programa vitalmente importante para a Bolívia criar uma economia e um Estado que não sejam dominados pela cocaína. O governo boliviano teve êxito nos seus esforços de erradicação. Não há nenhuma dúvida de que foi um programa politicamente difícil, que gerou confronto e conflito. Mas, como mencionei, uma das grandes decisões que o novo governo terá de tomar é que tipo de relação quer ter não apenas com os EUA, mas com a comunidade internacional.