Título: Adeus, FMI
Autor: Alcides Amaral
Fonte: O Estado de São Paulo, 09/01/2006, Espaço Aberto, p. A2

O relacionamento do Brasil com o Fundo Monetário Internacional (FMI) sempre foi marcado de altos e baixos. Períodos de verdadeiro "stress", com gritos de "fora FMI", "não necessitamos das imposições dos gringos", e assim por diante. O próprio Fundo se mantinha calado ou fazendo críticas veladas à condução da política econômica do País. Em contrapartida, períodos de euforia, com a diretoria do FMI elogiando abertamente a conduta do Brasil e a melhoria substancial de seus fundamentos. O Brasil era, por vezes, exemplo a ser seguido por outras nações. E, quando tal acontecia, a reação por aqui era igualmente elogiosa, os jornais estampavam em manchetes as palavras de apoio recebidas do organismo multinacional.

Lembro-me muito bem dos momentos de pressão que o então negociador da dívida externa, Pedro Malan, sofria em Nova York durante a negociação do Plano Brady, pois os bancos internacionais queriam o acordo com o Brasil, mas com a participação do FMI. Estávamos em moratória, o presidente Collor sofria processo de "impeachment", o clima político era totalmente contrário a qualquer aproximação com o Fundo. Mostrando essa realidade e procurando ganhar confiança em cada passo da negociação, conseguimos, sob a liderança de Pedro Malan e compromisso do governo brasileiro, chegar a um acordo à luz do Plano Brady (com desconto de até 35% do principal da dívida) sem a interferência do Fundo. Fato inédito, pois outros países que recorreram ao FMI - México, Argentina, etc. - tiveram de fazer acordo prévio com o Fundo para obterem os benefícios do Plano Brady.

A partir daquele momento passamos a ser uma espécie de modelo para a comunidade financeira internacional, porque cumpríamos tudo o que era prometido. Não é por outra razão que quando precisamos da ajuda do FMI ela veio rápida e em valores significativos. Foi assim em 1998, quando, depois da "quebra" da Rússia, perdemos mais de US$ 40 bilhões das nossas reservas e, novamente, em 2002, quando do período eleitoral. O mercado, assustado com os riscos de um eventual governo Lula, reduziu significativamente nossos financiamentos, as reservas secaram, mas com o novo "pacote" do Fundo tudo se normalizou, mesmo porque o governo Lula não fez nenhuma daquelas loucuras - ruptura, quebra de contratos, etc. - que o mercado temia.

Isto não quer dizer que o FMI seja infalível, acerte sempre em seus diagnósticos. O caso da Argentina foi daqueles que passarão à História como um erro grosseiro do Fundo. Apoiou a Lei da Conversibilidade (um dólar equivalente a um peso) até o último minuto, quando era evidente que essa lei precisava ser modificada. A área técnica do Fundo alertava para o fato, mas, como o ministro Cavallo estava confortável, a lei precisaria ser modificada pelo Congresso, e, principalmente, porque o povo argentino estava feliz com a força da sua moeda, nada foi feito. A cúpula do FMI aprovava os acordos, embora a Argentina não os cumprisse. O tempo foi passando até que a situação se tornou insustentável e a Lei da Conversibilidade teve de ser modificada, deixando o peso flutuar, com custos enormes para a população daquele país.

Com a melhora do cenário internacional, baixa das taxas de juros e elevada liquidez, a maioria dos países foi se ajustando. Não bastasse, as exportações cresceram no mundo dos países emergentes e os recursos do FMI se tornaram desnecessários. Tanto é verdade que, após a liquidação das dívidas do Brasil e da Argentina, a carteira de empréstimo do FMI está ao redor de US$ 50 bilhões, insignificante em relação à capacidade de emprestar do Fundo. Turquia e Indonésia são, agora, os principais devedores e o Uruguai, apesar do pequeno valor da sua dívida, passou a ser o maior devedor da América Latina.

O Brasil, depois dos períodos de aperto e necessidade vital da colaboração do FMI, graças à melhora em seus fundamentos e ao espetacular desempenho de suas exportações (além da volta do crédito bancário e do mercado), não renovou o acordo em 2005, agindo corretamente e com maturidade. Embora o acordo tenha deixado de existir, demos continuidade à austeridade fiscal e monetária e continuamos mantendo nosso objetivo de combate sistemático à inflação. Fomos além, conservando superávit fiscal no nível de 5% do PIB, quando o acordo original com o FMI exigia superávit de 3,75%. Isto é, a política econômica e monetária continuou sendo a mesma, com FMI ou sem FMI.

Passo seguinte, como o nível de reservas internacionais passou a ser confortável, o governo brasileiro decidiu liquidar antecipadamente nosso débito de cerca de US$ 15 bilhões com o Fundo. Nada errado em fazê-lo, embora a economia de juros a ser obtida, de cerca de US$ 900 milhões com a liquidação de tal dívida, poderia ser maior se liquidássemos alguns bônus soberanos que temos no mercado, nos quais os juros cobrados são maiores que os do FMI. De qualquer forma, foi uma decisão política de darmos um "adeus" ao FMI e não há como contestá-la.

O que lamentamos, apenas, é a maneira como foi feita pelo presidente Lula. Quando se dirigiu à imprensa para declarar que "acabou o tempo da colonização deste país", perdeu uma grande oportunidade de agir como verdadeiro estadista. Em vez de dizer que "viramos donos do nosso nariz", poderia ter informado à direção do FMI sobre nossa decisão de liquidar a dívida antecipadamente e agradecer pelos serviços prestados ao País ao longo do tempo. Seria um "adeus" altivo, maduro, de um país que reconhece a colaboração recebida, mas quer ter a liberdade de conduzir o seu próprio destino.