Título: O MST e a Petrobrás
Autor: Denis Lerrer Rosenfield
Fonte: O Estado de São Paulo, 09/01/2006, Espaço Aberto, p. A2

Assaz curioso é o apoio que a Petrobrás dá à Revista Sem Terra, do MST. Por exemplo, em seus números de setembro/outubro e novembro/dezembro de 2005, a estatal, ao patrociná-los, o faz utilizando-se também dos logotipos do Ministério de Minas e Energia e do governo federal. Trata-se, portanto, de um financiamento oficial, feito em nome da cultura. O anúncio traz o seguinte dizer: "A Petrobrás é a maior patrocinadora de cultura do Brasil." Ora, essa publicação é basicamente política, orientada por um forte viés ideológico esquerdizante, ancorado na supressão das instituições representativas, da economia de mercado e do próprio Estado de Direito. Neste sentido, pode-se dizer que a Petrobrás se põe, no caso, claramente a serviço de um projeto político, afastando-se de qualquer preocupação nitidamente cultural. A pergunta que se impõe é: qual é a relação entre o MST e a cultura, salvo sob a forma da endoutrinação revolucionária, procurando subverter a democracia representativa e as instituições republicanas?

No editorial, o MST conclama todos os seus leitores a lutarem por uma "agenda popular", na qual se destaca, por exemplo, a reforma política. O problema, contudo, reside no que essa organização política entende por "reforma política", aquela que muda "o processo de representação e adota mecanismos de democracia direta". Ressalte-se que esse número da revista e outros adotam a mesma linha de crítica sistemática da democracia representativa, por seu caráter "formal" e "burguês" e, desta maneira, necessariamente imperfeito, como se lhe faltasse um conteúdo, de natureza propriamente revolucionária. Deve-se aqui evitar cair na armadilha de considerar essa formulação como sendo apenas complementar à da democracia representativa, como seria o caso de referendos e plebiscitos, que se encaixariam perfeitamente no sistema da representação política, como ocorre em países como a França e a Suíça. O seu objetivo é bem outro, a saber, o da sua substituição por formas que teriam sua origem nas experiências petistas do Orçamento Participativo, que são formas de manipulação da população por instâncias partidárias e governamentais. Mais especificamente, seriam esboços de transplante para o Estado brasileiro das formas de controle emessetistas dos seus acampamentos e assentamentos, considerados como formas de "organização popular" e "participativa".

Num outro artigo sobre a reforma agrária, o agronegócio é considerado como o representante da nova oligarquia rural, dado o seu caráter eminentemente capitalista. A questão da produtividade rural passa completamente a segundo plano, se é que ainda preenche uma função do ponto de vista teórico e político, pois o que passa a interessar é o seu caráter eminentemente burguês. O conceito utilizado é o de "agronegócio burguês", marcando o seu caráter de classe, que é objeto da luta empreendida pelo MST, identificado a um movimento "popular". Recorre-se ao conceito marxista de luta de classes, tendo, de um lado, a burguesia e, de outro, os trabalhadores. Cabe ressaltar que essa formulação se encontra em quase todo o PT, inclusive em seus intelectuais, que têm atribuído a crise ética atual ao caráter de uma sociedade de classes, que não aceitaria um "operário" na Presidência da República, advogando por uma radicalização do processo político em termos de uma oposição entre "direita" e "esquerda". O instrumental teórico marxista serve de baliza para analisar a sociedade brasileira, vista sob a ótica de uma "luta de classes".

Fica muito clara nesse artigo a reafirmação da estratégia revolucionária do MST contra aquilo que considera como políticas compensatórias de reforma agrária, identificadas, na verdade, a uma "contra-reforma agrária". Ou seja, tudo o que poderia propiciar uma melhoria da vida dos trabalhadores rurais, via sindicalização no campo ou via desenvolvimento da pequena propriedade, é liminarmente desconsiderado por ser tratar de formas de inserção no capitalismo, que tomariam como modelo o "agronegócio burguês". As diferentes formas de crédito fundiário (Fundos de Terras, Cédula da Terra, Banco da Terra, leilões de terras, Minha Primeira Terra), os contratos de parceria técnica, a capacitação e aperfeiçoamento de pessoal (Pronera), a preservação ambiental, o Pronaf e as mais variadas formas de parceria entre organizações governamentais e organizações e movimentos sociais e sindicais seriam meras formas de um tipo de comportamento que segue os "preceitos da ordem dominante". Tudo o que poderia efetivamente se traduzir por uma outra condição social dos trabalhadores rurais e dos pequenos proprietários é tido por forma de acomodação à ordem capitalista, que se tornaria, assim, mais efetiva. O tipo de luta almejado pelo MST seria contra essas medidas (ou sua aceitação aparente, insistindo na sua insuficiência), pois o seu propósito consiste em superar a ordem capitalista, isto é, a economia de mercado, a democracia representativa e o Estado de Direito. A revolução, em suma.

Numa entrevista central com um obscuro professor cubano, a revista dá destaque a um tipo de intelectualque segue as ordens do governo/partido, cumprindo literalmente a função de um "intelectual orgânico", ou seja, aquele que obedece a uma orientação ideológica, pondo-se a serviço de uma "causa", num total descompromisso com a verdade. Eis o tipo de intelectual prezado pelo MST e por esses setores da esquerda apenas preocupados em fazer avançar a revolução e os seus dogmas. Aliás, é significativo que o referido professor trabalhe na Universidade de Havana, "onde preside a cátedra de estudos Antonio Gramsci". O título mesmo da matéria é revelador: A única saída para a América Latina é o Socialismo. Essa é a cultura financiada aqui pela Petrobrás.