Título: Os chapéus da diplomacia
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Fonte: O Estado de São Paulo, 22/12/2005, Notas e Informações, p. A3

A diplomacia brasileira usou vários chapéus na 6ª Conferência Ministerial da OMC, em Hong Kong. Contribuiu, com esse jogo múltiplo, para um inadiável empurrão na Rodada Doha de negociações comerciais. O sucesso do chanceler Celso Amorim pode ser avaliado pela irritação que provocou em Peter Mandelson. Mas o uso de múltiplos chapéus pode levar à perda de foco. Um dos chapéus mais notáveis, nessa etapa, foi o da parceria com os negociadores americanos. Atuaram juntos ao cobrar um prazo para a extinção dos subsídios europeus à exportação agrícola. A diplomacia européia rebateu a bola, exigindo de americanos, canadenses, australianos e neozelandeses o fim dos subsídios comerciais embutidos no crédito, no seguro, nas operações de estatais e na ajuda alimentar aos países pobres.

Os negociadores brasileiros buscaram também essas mudanças e não precisaram fazer coro com os europeus. Isso foi possível porque a escolha mais importante, nessa disputa, era entre o jogo ofensivo e o defensivo. O ofensivo era o dos americanos. A estratégia, prioridade para acesso a mercados, foi exposta pelo secretário de Agricultura dos Estados Unidos, Mike Johanns, a uma centena de líderes do agronegócio americano, em Hong Kong.

A explicação foi detalhada por Bob Stallman, presidente da American Farm Bureau Federation. A agricultura americana tem de crescer para fora, disse Stallman, porque a expansão da demanda ocorrerá no exterior. Ninguém chiou e não houve perguntas nem comentários sobre políticas protecionistas.

Vários segmentos do agronegócio americano - como o do açúcar - continuarão a cobrar proteção oficial. Mas a ênfase da política, insistiu Stallman, deve ser a luta pela abertura de mercados.

A atitude européia é muito mais defensiva. O empenho dos europeus em prolongar os subsídios à exportação até o último instante combina com a preferência pela retranca. Toda a conversa a respeito de "preocupações não comerciais" - cuidados com a paisagem, com o estilo de vida rural e até com os direitos dos animais - remete ao protecionismo.

O agronegócio brasileiro também deve concentrar o foco na abertura de mercados e, internamente, na acumulação de ganhos de eficiência e de qualidade. Ao contrário do agronegócio americano, poderá dispor de um mercado interno em expansão. Não será preciso, nem teria sentido, escolher um mercado ou outro. Os principais negociadores brasileiros sabem disso. Mas o Itamaraty acabou usando mais um chapéu e assumiu também o papel de paladino dos ineficientes.

A diplomacia brasileira acabou admitindo, além da categoria de "produtos sensíveis", defendida principalmente pelos europeus, uma classe de "produtos especiais", proposta por economias em desenvolvimento, como a Índia.

Conceitualmente, a lista de "produtos sensíveis" tem relação com a baixa competitividade de alguns setores. É o caso da produção de açúcar na Europa e nos Estados Unidos. É crucialmente importante, para o Brasil, negociar uma disciplina severa para essas listas.

No caso dos especiais, o objetivo proposto é a defesa de agricultores familiares, ineficientes e pobres. Não se trata de proteger produtos, mas produtores. A aplicação desse conceito leva a uma situação absurda.

A agricultura brasileira produz milho com eficiência e exporta esse milho em quantidades consideráveis, transformado em carnes de frango e de porco. Muitos desses produtores são pequenos proprietários com boa base tecnológica, assim como os bons plantadores de feijão.

No entanto, o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) defende a adoção de uma lista de produtos especiais, milho e feijão incluídos, para proteção do agricultor pequeno e pobre - pobre por ser ineficiente e não por ser pequeno.

Criada essa categoria de produtos, vários países em desenvolvimento, incluídos alguns emergentes e poderosos, poderão usá-la para jogadas protecionistas. Sem esse recurso, a China foi capaz de impor um jogo duro aos exportadores brasileiros de soja, no ano passado.

Se não tentar reduzir esse risco, a diplomacia brasileira, depois de um desempenho respeitável em algumas frentes, poderá acabar usando o pior de todos os chapéus: aquele cônico e alto, graças à interferência de um ministério dedicado ao atraso.