Título: Réquiem pela esperança perdida
Autor: Jarbas Passarinho
Fonte: O Estado de São Paulo, 10/01/2006, Espaço Aberto, p. A2

Na Sociologia Política se aprende que os regimes autoritários, ao revés dos totalitários, tendem historicamente à volta às liberdades políticas e civis e à democracia que nelas se baseia. O ciclo militar brasileiro começou com passeatas de milhão de pessoas nas ruas, apoiadas quase unanimemente pelas instituições civis, políticas e religiosas. Findou com 1 milhão de pessoas nas mesmas ruas clamando pelo retorno à plenitude democrática, apoiadas igualmente pelas mesmas instituições. No Brasil vivemos a democracia plena, as liberdades fundamentais asseguradas. Os governos democráticos enfrentam, porém, desafios que provêm de ameaças contextuais, intrínsecas e tendências sociais. Os desafios contextuais, que derivam de ameaças externas, não os temos. Os intrínsecos, sim, porque refletem na governabilidade. A democracia pressupõe sufrágio universal, eleições regulares, competição entre partidos, liberdade de expressão e respeito à propriedade privada que atenda à função social. A liberdade de expressão o governo tentou limitar com um conselho logo apelidado de mordaça. Recuou. A propriedade privada, mesmo a empresa produtiva, norma constitucional, não é respeitada, em nome de uma reforma agrária deformada. Os desafios intrínsecos resultam de vários motivos. Demandas acima da capacidade de o governo atender são um deles. Normais em qualquer governo. A grande indulgência com os abusos, que transformam movimentos sociais em bandos violentos, é mais outro - caso principalmente do MST -, pois governabilidade e democracia são conceitos antagônicos: excesso de concessões significa déficit de governabilidade, enquanto forte governabilidade sugere democracia insuficiente.

Nos quase três anos de governo Lula, alguns desses desafios intrínsecos são flagrantes, agravados pelas promessas feitas em campanha, e na posse, e jamais cumpridas, mesmo no limite possível da capacidade do Estado. No primeiro ano, a desculpa era a "herança maldita", de que só não se queixou, em toda a nossa História,Tomé de Souza. A bazófia de criar 10 milhões de empregos veio a ser um forte dilema central do governo, que chegara com 80% da crença em bom sucesso, ungido nas urnas com 52 milhões de esperançados "num Brasil melhor". Dois anos depois, uma pesquisa revelava que 36% dos entrevistados consideravam ainda o desemprego como a principal preocupação. A estrela vermelha - símbolo herdado do exército comandado por Trotski - foi desbotando dentro do próprio Partido dos Trabalhadores, no conflito das alas de natureza ideológica, que fizeram do PT o partido-ônibus, dos comunistas, salvados do incêndio da luta armada, aos reformistas eqüidistantes quer dos revolucionários, quer dos conservadores imobilistas, para os quais a sociedade é justa, e nela só fracassam os incapazes. Daí por que Hayek tem horror à expressão "injustiça social".

O núcleo petista, submisso a um ministro poderoso, tentou mudar governo em poder, aparelhando o Estado, outra fonte de desafio intrínseco. Formou a base parlamentar governista por meio das alianças movidas pelo dinheiro público, a partir das provas colhidas pelas CPIs que o governo tentou desesperadamente impedir que fossem criadas. O retrato da decepção popular repercutiu nas pesquisas, antes garantidoras de reeleição tranqüila de Lula, ao mesmo tempo que 55% consideraram que a corrupção aumentou no governo Lula. Do ponto apical da curva de aprovação em 2002, a confiança em Lula desabou em 2004. Cenários de eleições em 2006 mostraram que o favoritismo de Lula desmoronava para uma derrota já no primeiro turno, em outubro, com 39% dos votos.

Tenho a mania de recortar e guardar entrevistas de políticos. Não lhes leio os livros laudatórios, muitas vezes escritos por desprezíveis bajuladores, nem os dos oposicionistas intransigentes. Procuro basear-me no que eles mesmos dizem e prometem nas entrevistas. Guardo e, passado um tempo compatível com a realização do dito e prometido, faço o meu julgamento. São já perto de três anos que Lula governa. Prazo mais que suficiente para fazer um balanço das esperanças.

Não lhe nego o êxito no controle da inflação, ainda que os mais altos juros do mundo nos façam crescer a metade do que crescem os países emergentes. As viagens ao exterior, que correspondem - segundo este jornal (1º/1, A1) - a cinco voltas ao mundo, não renderam boas alianças úteis, e fracassaram quanto ao cobiçado lugar permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas. Não há como negar o êxito extraordinário nas exportações. O programa Fome Zero, desde o início o bispo Mauro Morelli percebeu que não passava de uma declaração de intenção. É um fracasso comparado com o entusiasmo ardoroso que despertou na sociedade. Compensou-o a Bolsa-Família, mas esta já vinha de programas assistenciais dos tucanos: o Bolsa-Escola, a Bolsa-Alimentação, o Cartão-Alimentação e o Vale-Gás. Oportunamente todos unificados, favorecem milhões de famílias.

O PT criticava duramente o governo Fernando Henrique Cardoso, que recebeu a dívida pública em R$ 60 bilhões e a aumentou para R$ 600 bilhões nos seus dois mandatos. Agora está perto de R$ 1 trilhão.Todos os brasileiros com três refeições por dia, combate implacável à corrupção, governo impecavelmente ético são promessas que não passaram de mistificação e só servem para justificar a recente declaração de Lula: "Quatro anos é pouco para governar." Do sábio Confúcio se lê que "sob um bom governo a pobreza é uma vergonha e sob um mau governo a riqueza é, também, uma vergonha".

A desesperança tomou conta da esperança.