Título: Uruguai, EUA e Mercosul
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Fonte: O Estado de São Paulo, 10/01/2006, Notas e Informações, p. A3

Dois ministros do governo uruguaio defenderam nos últimos dias a negociação de um acordo de livre comércio de seu país com os Estados Unidos - o de Economia e Finanças, Danilo Astori, numa entrevista ao semanário Búsqueda, na semana passada, e o da Indústria, Jorge Lepra, em declarações à Rádio Sarandí, ontem. Na sexta-feira, depois de conhecida a entrevista de Astori, o ministro de Relações Exteriores, Reinaldo Gargano, deu uma declaração destinada, aparentemente, a apaziguar os dois sócios maiores do Mercosul, Argentina e Brasil: "Não há nenhuma iniciativa governamental destinada a relançar um tratado de livre comércio com os Estados Unidos."

A declaração de Gargano não bastou para liquidar o assunto. Ele não negou o interesse uruguaio numa negociação. Apenas disse que não há, agora, uma iniciativa com esse objetivo.

Além do mais, a entrevista do ministro da Indústria foi posterior à declaração do chanceler e apenas acrescentou um detalhe: será preciso consultar os sócios do Mercosul. Não por isso, acrescentou, o Uruguai deixa de poder negociar com todos os países, incluídos, naturalmente, os Estados Unidos. "Se não procurarmos melhorar as relações com nosso principal cliente, com quem o faremos?"

Nenhum membro do Mercosul pode negociar um acordo de livre comércio com um parceiro de fora, por sua conta, sem violar as normas do bloco, que é uma união aduaneira. Seus integrantes têm de respeitar a tarifa externa comum, além de preservar, naturalmente, as condições internas de comércio delimitadas por essa barreira.

O interesse demonstrado pelos dois ministros uruguaios não surpreende. Em dezembro de 2003, no fim da reunião ministerial da Alca em Miami, os principais delegados do Uruguai e dos Estados Unidos anunciaram a negociação de um acordo bilateral sobre investimentos. Esse acordo, com garantias bilaterais, foi aprovado recentemente pelo Parlamento uruguaio.

As garantias de investimentos têm sido um item fundamental dos acordos bilaterais entre Estados Unidos e países de várias regiões. São, no entanto, um dos tópicos mais controvertidos nas discussões da Alca, especialmente pela resistência do Brasil e da Argentina.

A negociação do acordo sobre investimentos começou na gestão do presidente Jorge Batlle. Seu sucessor, Tabaré Vázquez, admitiu a possibilidade, na época da posse, de reavaliar essa iniciativa. Mas não houve recuo. Se alguém esperava uma alteração de rumos, com a eleição de um político descrito como de esquerda, iludiu-se completamente.

Vázquez não apenas manteve esse entendimento com os Estados Unidos, mas também a candidatura do embaixador Carlos Pérez del Castillo a diretor-geral da OMC, apesar da oposição brasileira. Além do mais, seu governo apoiou o candidato colombiano Luiz Alberto Moreno, preferido pelos Estados Unidos, à presidência do Banco Interamericano de Desenvolvimento. Dos governos do Mercosul, só o argentino votou no candidato brasileiro, João Sayad.

O presidente Tabaré Vázquez concebe os interesses de seu país independentemente do Mercosul. Nesse aspecto, seu esquerdismo se assemelha ao do chileno Ricardo Lagos, não ao terceiro-mundismo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e nem ao populismo dos presidentes Néstor Kirchner, da Argentina, e Hugo Chávez, da Venezuela.

Ao insistir na conveniência de um acordo comercial com os Estados Unidos, depois da declaração do chanceler Gargano, o ministro Jorge Lepra mostrou a real importância do assunto para o governo uruguaio. Para o governo americano, interessado em cercar o Brasil e a Argentina por meio de acordos com vários países latino-americanos, a mensagem dos ministros uruguaios é um claro estímulo.

Os Estados Unidos já têm acordos de livre comércio com Canadá, México, Chile, República Dominicana e América Central e negocia com o Panamá e a Comunidade Andina. Enquanto isso, Brasil e Argentina atraem a Venezuela para o Mercosul e se arriscam a tornar o bloco mais engessado e mais difíceis as negociações com os Estados Unidos e a União Européia.