Título: As águas turvas da transposição
Autor: Ipojuca Pontes
Fonte: O Estado de São Paulo, 23/12/2005, Espaço Aberto, p. A2

Tal como previsto, o encontro do presidente Luiz Inácio Lula da Silva com o bispo de Barra (BA), dom Luís Cappio, ocorrido no Palácio do Planalto, deu com os burros n'água. Como se sabe, entre os meses de setembro e outubro, o bispo passou dez dias em greve de fome por se insurgir contra a problemática transposição das águas do Rio São Francisco, obra que encarou como um simples "hidronegócio". Na ocasião, procurando conter o inconveniente protesto do bispo, que chegou a tomar conta do noticiário internacional, o governo Lula negociou, por intermédio do ministro das Relações Institucionais, Jacques Wagner, uma pausa estratégica para se "aprofundar melhor as discussões em torno do projeto".

Depois do encontro, que ocorreu longe dos olhos (e ouvidos) da imprensa, deduziu-se logo que a proposta de ampliação do debate em torno da transposição não passou de manobra protelatória do governo, visto que a intenção do Ministério da Integração Regional, responsável pelo seu encaminhamento, é de iniciar as obras nos primeiros dias de janeiro de 2006. Ao projeto não cabe mais nenhuma protelação, afirma-se oficialmente.

No diálogo de surdos travado no gabinete presidencial, um Lula sombrio e de pouco improviso ouviu de dom Luís Cappio a seguinte afirmação: "Presidente, não é verdade que a transposição levará água a quem tem sede e isso, por si só, já é um impedimento ético mais que suficiente para justificar a oposição ao projeto." (Consoante dados de consultores técnicos dos Estados da Bahia e de Sergipe, o projeto faraônico, se concluído, atenderia a menos de 5% da população do semi-árido.)

Houve, no arremedo de diálogo, de certo, um instante de confraternização: o bispo, que foi eleitor do PT, levou o presidente às lágrimas quanto lembrou episódios vividos nas campanhas eleitorais dos anos 90, enquanto Lula, por sua vez, abrindo a guarda, deixou escapar, malicioso: "Vocês devem aproveitar enquanto é tempo, porque, quando eu voltar para São Bernardo, esse negócio de diálogo vai deixar saudades." O religioso, guarda fechada, contra-atacou: "Eu só encerrei a greve porque vocês se comprometeram a retomar as negociações."

O fato concreto é que a transposição do São Francisco navega em águas turvas - para dizer o mínimo. No mês de outubro, a juíza Cynthia de Araújo Lopes, da 14ª Vara da Justiça Federal de Salvador, acatando ação civil pública apresentada pelos Ministérios Públicos Federal e Estadual da Bahia, juntamente com outras seis entidades civis, suspendeu por meio de liminar o processo de licenciamento ambiental que permitia o início das obras de transposição. Na mesma ocasião, o governador de Alagoas, Ronaldo Lessa (PDT), um antigo aliado, retirou o apoio ao projeto, alegando que cansou de esperar os prometidos recursos federais para obras de revitalização do São Francisco.

Um pouco antes, no mês de agosto, o Tribunal de Contas da União determinou que o Ministério da Integração suspendesse a assinatura do contrato com a empresa que venceu a licitação para o fornecimento de bombas que iriam levar as águas do rio para o as bacias do semi-árido, acrescentando, ainda por cima, que havia "indícios de irregularidades" e "falhas no Estudo de Impacto Ambiental no projeto".

Todo esse mundo de contestação à transposição das águas do rio se tornou patente no mês de maio, quando, em nota pública de esclarecimento, o Comitê da Bacia Hidrográfica do São Francisco (CBHSF) se insurgiu "contra a utilização indevida do Plano de Recursos Hídricos da Bacia pelo ministro Ciro Gomes", que, "para justificar a transposição", transmite "a falsa idéia de que o projeto oficial conta com o apoio do Comitê, o que significa desacreditar esse organismo junto à sociedade civil, usuários e poderes públicos da bacia".

Afinal, o que se esconde por trás dessa luta corporal para se efetivar uma obra devidamente analisada e tida como "inoportuna e desaconselhável" por consultores técnicos do Banco Mundial (Bird), da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e de renomados especialistas na matéria? Qual o motivo de tanta discórdia, que chega a dividir toda uma região e mesmo o País, sem falar na possibilidade de o conflito culminar com o sacrifício de vidas, a começar pela do bispo de Barra? Resposta: a bagatela de R$ 4,6 bilhões, num ano de intensa disputa eleitoral, com Lula e aliados obcecados pela reeleição.

Algumas questões básicas devem ser levantadas nesta refrega. Por exemplo: por que a transposição, de custos fabulosos, a fomentar desconfianças e inspirar dúvidas, tem de ser feita justamente num ano eleitoral? Por que não fazê-la em momento menos tenso, com os ânimos mais serenados e os apetites eleitorais satisfeitos?

Examinando detidamente a questão, são muitos as razões que levantam obstáculos à transposição das águas do Rio São Francisco, algumas de natureza logística e técnica, outras de franco teor político ou ambiental. Por trás de tudo, no entanto, parecem impor-se os motivos de ordem ética. É muito difícil para a sociedade, e suas instituições civis, acreditar que um governo seriamente envolvido com práticas criminosas e ilícitos de toda ordem, a começar pelo reconhecido caixa 2, ganhe a credibilidade necessária, sobretudo em época de reeleição, para manipular bilhões de reais. Não dá. Seria algo assim como acreditar que por trás do corpo de Barba Azul se esconde a alma pura de Romeu - uma caso de transmutação improvável, para não dizer impossível.